Num balanço ainda provisório, a Missão das Nações Unidas para o Congo (MONUSCO), avançou com um mínimo de seis mortos, mais de uma centena de feridos e dezenas de detenções, nos confrontos entre as forças de segurança e os manifestantes de associações católicas que, tal como a 31 de Dezembro último, no Domingo saíram às ruas para exigir a saída do poder do Presidente Kabila.
Ainda há menos de duas semanas, a autoridade máxima da igreja católica na RDC, o cardeal Laurent Monsengwo Pasynia, que representa 40 por cento da população do país, estimada em cerca de 75 milhões de pessoas, exigia a saída imediata dos "medíocres" do poder, referindo-se de forma inequívoca a Kabila, ao mesmo tempo que condenava de forma veemente o uso da força polícia contra manifestantes pacíficos, inclusive dentro das igrejas, o que mostra a forte determinação do regime em se manter a qualquer custo.
Também o Papa Francisco veio a público pedir o fim da violência, apelando às autoridades de Kinshasa para procurarem, através do diálogo, soluções que tenham como único fim o bem comum.
Enquanto isso, a ACAJ, a associação congolesa que defende o acesso à justiça, divulgou informações sobre o sequestro de pelo menos 10 padres na RDC, no âmbito dos protestos, e ainda a existência de dezenas de detenções nas principais cidades do país, para além de Kinshasa.
Apesar de acossado por todos os lados, desde a oposição política interna, à generalidade das ONG e da igreja Católica, que foram os últimos a aderir às exigências de saída de Kabila do poder, à comunidade internacional, incluindo a ONU, Joseph Kabila não mostra sinais de cedência e aponta todo o seu arsenal para a manutenção do poder com recurso a expedientes como sejam o perpétuo adiamento das eleições alegando ausência de condições para a sua realização.
Recorde-se que as eleições gerais já deveriam ter sido realizadas em Dezembro de 2016, foram adiadas para Dezembro de 2017, após um acordo mediado pelos bispos católicos e em rescaldo do caos em Kinshasa provocado pelas manifestações sangrentas que tinham ocorrido em Setembro e Dezembro desse ano, com mais de 150 mortos e centenas de feridos e detidos.
Não se realizaram também em 2017 e Kabila ordenou que a data fosse, à revelia da oposição e da sociedade civil quase toda, alterada para 23 de Dezembro deste ano, 2018. A oposição protestou, as ONG e a igreja católica também, mas países como os EUA e a ONU optaram por avisar Kabila de que não lhe tolerariam novos expedientes para se perpetuar no poder, até porque não pode recandidatar-se a um terceiro mandato conforma as disposições constitucionais do país.
As perigosas especificidades do gigante Congo
O porquê dos cuidados extremos com este país por parte da comunidade internacional é óbvio.
A República Democrática do Congo não é só um dos países mais populosos e mais extensos de África, é também dos mais ricos, senão o mais afortunado em recursos naturais, e, claramente a maior ameaça à paz continental, como se vê analisando a sua geografia dos conflitos, claramente a rebentar pelas costuras, seja por causa de quezílias políticas internas, seja por sublevações regionais, pela presença de guerrilhas alimentadas por interesses externos ou pela eterna cobiça que gera nos países vizinhos.
O momento actual da RDC, com um contexto histórico diferente, tem um potencial de progressiva desestabilização social e política só comparável aos primeiros anos da independência, em 1960, com a tomada do poder por Joseph Kasa-Vubo, o assassinato de Patrice Lumumba, no Katanga, e a subida ao poder de Mobutu Sese Seko, em 1964; ou com o processo tumultuoso de deposição do ditador Mobutu, em 1993, que deixou as ruas de Kinshasa a ferro e fogo, provocando milhares de mortos.
A história violenta do vizinho gigante de Angola, com cerca de dois mil quilómetros de fronteira comum, porosa e perigosa, é bem conhecida.
Depois de uma década de relativa acalmia sob a liderança de Joseph Kabila, que chegou ao poder substituindo o seu pai, Laurent-Désiré Kabila, que governou o Congo entre 1997-2001, após o fim da chamada primeira guerra do Congo, sendo ainda de registar a segunda guerra do Congo, entre 1998 e 2002, aquela que antecedeu a chegada definitiva e Constitucional ao poder do actual Presidente da RD Congo, onde permanece há dois mandatos seguidos, tudo se presta a mudar e novamente da forma mais violenta.
E tudo porque, aos dois mandatos legítimos, Kabila acrescentou artificialmente, a partir de Dezembro de 2016, um tempo indeterminado, gerando mais uma crise eleitoral, cujo desfecho é incerto. A questão que se impõe, até pelo evidente impacto que essa evolução terá em Angola, é: que futuro aguarda este gigante, ora dócil, ora quezilento, situado no coração de África?
Um mapa difícil de seguir
Uma das hipóteses para procurar essa resposta é regressar a Janeiro de 2015, onde verdadeiramente teve início a crise que o país atravessa, quando Joseph Kabila e a Maioria Presidencial (MP) que o apoia, lançaram o barro à parede para testar a aceitação de alteração à Constituição que abriria caminho a um terceiro mandato.
A reacção a esta proposta não prevista no texto constitucional foi avassaladora. Pela voz de Etieene Tshisekedi (entretanto falecido no início de 2017), o líder incontestado da oposição e histórico concorrente à liderança do país pela União Democrática para o Progresso Social (UDPS), partido que fundou, gerou protestos de rua, com milhares de pessoas a exigir a Kabila que parasse com as suas intenções, surgiram violentos confrontos em Kinshasa, gerando muitas dezenas de mortos... mas levando o Presidente a voltar atrás com as suas intenções de mexer na Constituição.
Em Setembro de 2016, mais uma vez com Kabila no centro do problema, o Governo anunciou a impossibilidade, por questões financeiras, de realizar o registo eleitoral, o que, na prática, impunha um adiamento das eleições previstas para Dezembro do mesmo ano. Mais uma vez, a oposição voltou às ruas, mais uma vez a polícia reagiu em força, o que, mais uma vez, resultou na morte de meia centena de pessoas.
Foi este episódio que gerou a urgência de o país político parar para pensar no rumo que as coisas estavam a levar e a oposição, ainda sem Tshisekedi e a sua incontornável UDPS, e a MP de Kabila, sentaram-se à mesa para negociar um processo de transição. Só que a oposição representada nas negociações não representava o país e a UDPS disse sempre que não aceitava quaisquer decisões dali saídas.
Chegou a data das eleições, em Novembro de 2016, e estas não aconteceram, tendo Tshisekedi ameaçado com um furacão de protestos logo para 19 de Dezembro, data de expiração do segundo e último mandato de Kabila. O que aconteceu, de facto, com mais sangue nas ruas a desenhar a violência em Kinshasa, com outros, pelo menos, 40 mortos, mas Joseph Kabila manteve-se no poder...
A chegada dos bispos às negociações
Com a chegada da Conferência Episcopal do Congo à mesa das negociações, assumindo o papel de mediadora, depois de Etienne Tshisekedi, admitir negociar uma transição política pacífica, foi possível um consenso, desta vez alargado e representativo, que levou à assinatura do acordo entre a MP de Kabila e o aglomerado da oposição liderada pelo octogenário líder da UDPS, denominado "Rassemblement", de 31 de Dezembro.
Foi com uma ténue esperança que o Congo iniciou 2017, logo posta em causa pelo polvilhado de violência que se impôs quase em todo o país. E, também, pela morte de Etienne Tshisekedi, na Bélgica, onde estava em tratamento médico, logo no início de Fevereiro, que trouxe de novo a incerteza ao evoluir do processo de transição, abrindo uma nova incógnita e novo desnorte no comando das forças da oposição.
A situação na oposição levou algum tempo a normalizar, mas com a chegada ao poder na UDPS de Félix Tshisekedi, filho de Etienne, o protesto voltou aos carris, mas com menos vigor, ou, estrategicamente assim para dar espaço à contestação do universo dos católicos congoleses.
As eternas guerrilhas
Como se não fosse suficiente, nos Kivu Norte e Sul, junto às fronteiras na Região dos Grandes Lagos, com o Uganda e o Ruanda, as antigas milícias Mai-Mai, criadas na década de 1990 como forças de protecção contra as invasões de guerrilhas ruandesa, a Frente Democrática de Libertação do Ruanda (FDLR) e a Aliança das Forças Democráticas (ADF), com origem no Uganda, sempre a cobiçar as riquezas locais, reiniciaram os massacres de camponeses desarmados, as guerrilhas de origem externa voltaram a ocupar território congolês e também elas retomaram as acções violentas, perante a aparente incapacidade da missão da ONU no país, a MONUSCO, apesar de integrar milhares de homens armados em apoio às acções de controlo e pacificação das Forças Armadas da RDC (FARDC).
No Kasai, as milícias de Kamwina Nsapu, um líder tribal que se sublevou contra o poder de Kinshasa, espalharam, durante meses, o terror nas localidades desta província, que faz fronteira com Angola, especialmente na Lunda Norte, gerando mais de 30 mil refugiados na Lunda Norte, como que a dar um aviso a Luanda do que pode ser uma explosão do vizinho gigante que ocupa o coração da África subsaariana.
Por tudo isto, a República Democrática do Congo está em permanente vigilância por parte das organizações da comunidade internacional, sejam as sub-regionais, como a SADC, seja a organização que reúne os países da região dos Grandes Lagos, onde Angola está presente, sejam as mais latas, como a União Africana, a União Europeia, a Francofonia e, naturalmente, a ONU, todos com constantes apelos ao diálogo... para já sem eco no país.
Como pano de fundo está a noção, profusamente admitida, e comprovada com a história das últimas décadas, de que o Congo tem dentro de si um potencial gigantesco de desestabilização continental, como o próprio Joseph Kabila já alertou para essa possibilidade.
Como olha Angola para o tumultuoso vizinho do Norte?
Com apreensão é o mínimo que se pode responder. Mas vamos por partes. Há décadas que se diz à boca pequena, mesmo que nunca tenha sido cabalmente confirmado tal cenário, que Angola tem uma importante força militar na RDC, nomeadamente na guarda presidencial e até que militares angolanos estiveram envolvidos em acções armadas ao lado das FARDC.
Tudo porque é muito aquilo que une os dois países, desde logo a partilha de uma parte importante do mar de Cabinda, ou na Bacia do Baixo Congo, onde estão situados alguns blocos petrolíferos explorados por Angola, o que já gerou algumas crises importantes, como aquela que rebentou em 2008.
Em Julho de 2008 Angola e a RDC chegaram a um acordo sobre o estabelecimento de um corredor marítimo nas águas profundas da Bacia do Baixo Congo, no qual seriam definidas áreas de interesse comum que apresentassem depósitos de hidrocarbonetos e cujos benefícios financeiros seriam equitativamente repartidos. O corredor em questão está situado na área marítima angolana a Sul do bloco 14 e a Norte dos Blocos 15 e 31, e não inclui os depósitos que na altura deste entendimento já tivessem sido descobertos pelos operadores das concessões angolanas.
Este arranjo durou muito pouco tempo. Poucos meses depois o então ministro dos Recursos Naturais, Isekemanga Nkeka, dizia que Angola tinha aceitado aquele acordo, para desviar a atenção da sua própria ocupação de zonas congolesas.
Neste capítulo, as coisas acalmaram, mas podem sempre ser retomadas, desde que os interesses a isso conduzam, até porque na memória ainda estão as declarações, de 2007, em que o então ministro dos Recursos Naturais, Rene Nkeka, disse que grande parte da produção petrolífera angolana tinha origem nas plataformas angolanas "localizadas em águas congolesas", ameaçando mesmo que se não fossem encontradas soluções satisfatórias, a RDC recorreria a instituições internacionais.
Mas está ainda na memória a expulsão de milhares de angolanos do Congo em 2009, gerando uma das maiores crises entre os dois países, depois de o Parlamento de Kinshasa ter aprovado uma lei que permitiu a retaliação face ao repatriamento de imigrantes ilegais em Angola oriundos do país vizinho.
E este é um facto sem segundas versões. A pressão migratória exercida a partir do Congo sobre a extensa fronteira que une os dois países é uma realidade já assumida.
Foi essa razão, entre outras que levou as Forças Armadas Angolanas, através das suas chefias de topo, a admitirem a presença de militaras seus em áreas da RDC junto à fronteira com Angola, a lançarem avisos sobre a importância de controlo das fronteiras e a lançar alertas para o perigo que representam, ou podem representar, as muitas centenas de milhar de congolesas ilegais em Angola.
É essa realidade que permite somar mais de 120 mil os congoleses-democráticos expulsos, em média anual, de Angola.
Isso mesmo foi também dito por João Lourenço, que era então ministro da Defesa, e candidato do MPLA às presidenciais, quando, numa das primeiras intervenções públicas como candidato a PR, abordou a questão da imigração ilegal, à qual se referiu como merecedora de uma resposta eficaz, recorrendo mesmo a uma metáfora, onde disse que Angola quer receber em sua casa aqueles que convida e não aqueles que entram em casa saltando por uma janela das traseiras.
Naturalmente que, perante este quadro, facilmente se depreende que Angola está claramente na linha da frente das consequências de uma eventual degradação das estruturas do Estado na República Democrática do Congo.
E essa parece ser também o entendimento em Angola, até porque a RDC é um dos pontos permanentemente em discussão no âmbito da Conferência Internacional da Região dos Grandes Lagos (CIRGL), que é presidida por Angola e que o ex-Chefe de Estado angolano, José Eduardo dos Santos, numa das últimas reuniões alargadas desta organização pediu mesmo aos países africanos que enviassem efectivos para reforçar a presença no âmbito da MONUSCO e apoiar as FARDC como forma de garantir mais eficácia no combate às forças externas que continuam a desestabilizar aquele país.
Após assumir o poder, o Presidente João Lourenço ainda não se alongou em declarações sobre esta prolongada crise, mas seguramente não deixou de ter um olho permanentemente colocado nas movimentações políticas do instável e gigante vizinho do norte.