Para a história vai ficar o último soldado dos EUA a entrar para o avião militar C-117 que deixou, na noite de segunda-feira, o aeroporto de Cabul, mas para o presente o que conta é que ficaram para trás centenas de milhares de afegãos aflitos por temerem a vingança dos taliban depois de anos a fio a trabalharem para os países ocidentais que integraram as forças da NATO ou as suas organizações civis, depois de Washington ter prometido que ninguém ficaria abandonado à sua sorte no Afeganistão.
Ficaram muitos, como o demonstram as imagens passadas nas televisões internacionais ainda presentes em Cabul, porque não conseguiram chegar ao aeroporto ou porque os aviões disponibilizados pelos países da NATO não foram em número suficiente, incluindo ainda entre uma a duas centenas de norte-americanos civis.
Mas, se a palavra dos lideres taliban, que governaram o Afeganistão com especial violência e intolerância entre 1996 e 2001, for cumprida - o que os afegãos ouvidos pelos media ocidentais, de forma geral, dizem não ser para levar a sério -, desta feita, nem as pessoas que querem sair vão ser impedidas de partir do Afeganistão, nem as mulheres e as raparigas têm nada a temer porque vão poder continuar a trabalhar e a estudar, embora segundo a lei islâmica aplicável, que, para estes "estudantes do Islão", tradução da palavra taliban, é a Sharia, cuja aplicação literal reduz as mulheres e os fiéis de outras crenças a seres inferiores e sem direitos, pelo menos se a referência for a Declaração Universal dos Direitos Humanos.
Se os taliban de hoje, que se dizem diferentes dos taliban de há 20 anos, são mesmo diferentes - tudo indica que não, porque já há relatos que o comprovam -, apenas o tempo permitirá percebê-lo, mas, com a partida do último avião com o último soldado dos EUA do aeroporto de Cabul, uma certeza existe já: foi tudo feito à pressa, com custos que se traduzem em dezenas de vidas perdidas, que vão das pessoas desesperadas que se agarraram à fuselagem de um dos primeiros C-117 que deixaram o país e depois caíram para a morte - fazendo lembrar a queda de pessoas das torres gémeas a arder, em 2001, após o ataque reivindicado pela al-qaeda de Osama bin Laden - aos espezinhados na corrida para chegar ao aeroporto até aos 13 militares americanos que pereceram na explosão reivindicada por um ramo do `estado islâmico" denominado ISIS-K e que procuravam organizar o caos instalado nas imediações da aerogare.
Com o aproximar da data limite imposta para a saída do último militar dos EUA, 31 de Agosto, e com a saída do derradeiro C-117, onde embarcaram o comandante das operações de resgate, general Christopher Donahue (last man out), e o embaixador Ross Wilson, personificando a saída do Afeganistão da maior potência económica e militar do mundo sem glória e pouca honra, como são disso exemplo todos aqueles que ficaram para trás depois de anos de serviço prestado aos países da NATO.
Isto, apesar de, desde a chegada do taliban a Cabul, a 15 de Agosto, perto de 130 mil pessoas terem sido retiradas do país pelos países da NATO, a maior parte pelos EUA.
Este momento, que acontece duas décadas após a chegada ao país em busca de vingança, o que se traduziu na mais longa guerra dos EUA, numa espécie de expedição punitiva, pelos norte-americanos, pouco depois dos aviões pilotados pela al-qaeda contra as torres gémeas em Nova Iorque, permitiu trazer à memória a forma atabalhoada como aconteceu a saída de Saigão, em 1975, na contagem final da guerra do Vietname, ou ainda a forma igualmente humilhante como a então União Soviética foi obrigada a deixar o Afeganistão depois de longos anos de guerra, entre 1979 e 1989.
Nem os soviéticos tiveram razões para sair ao som da fanfarra, nem os americanos têm agora razão para festejar seja o que for, apesar de o Presidente Joe Biden ter vindo a público garantir que os 20 anos de presença militar no Afeganistão não foram em vão porque o objectivo inicial era afastar o perigo de ataque aos EUA e punir os autores do ataque ao WTC e isso foi, entende, conseguido.
Se foi conseguido o objectivo inicial, como diz Biden, então o que se viu já em Cabul é uma excepção, porque o `estado islâmico", ou daesh, ou ISIS, como é conhecida a organização que emergiu do caos gerado pela ocupação dos Estados Unidos do Iraque, do Afeganistão e da guerra na Síria, substancialmente mais radical que os taliban, já deu sinal de vida ao reivindicar o atentado suicida que na semana passada tirou a vida a mais de 170 pessoas no aeroporto de Cabul, incluindo as de 13 solados dos EUA.
E os analistas citados pelos media internacionais apontam já para sinais claros de que os taliban não vão ser capazes de evitar que o Afeganistão não volte a ser um palco seguro para a germinação de novos jihadistas que irão integrar as diversas organizações islâmicas radicais espalhadas pelo mundo, desde logo o ISIS.
E desta feita com um risco suplementar. Os Estados Unidos, só à sua conta, deixaram mais de 85 mil milhões USD em material de guerra no Afeganistão, que pertencia ao exército afegão e foi tomado pelos taliban, sem contar com o que os outros países abandonaram, incluindo helicópteros de guerra dos mais modernos que existem, blindados, tanques, mísseis e artilharia, estando agora para ver o que vão os novos senhores do território fazer com tanto poder de fogo.
Certo e seguro, como o têm dito a generalidade dos especialistas citados pelos media internacionais, é que os EUA podem ter saído fisicamente do Afeganistão, mas Washington terá de estar na linha da frente do esforço diplomático para pressionar os taliban a refrearem os ímpetos e a manterem o daesh longe do gatilho.
Por outro lado, outra frente de batalha está a começar, que é a humanitária, muitos dos mais de 38 milhões de afegãos, pelo menos um terço, à beira da fome severa, com destaque para centenas de milhares de crianças, idosos e mulheres, bem como nos campos de refugiados gerados nas últimas semanas nos vizinhos Paquistão e Irão, para onde fugiram muitos dos que não acreditam nas palavras mansas dos lideres taliban.
No balanço final de 20 anos de guerra afegã, Washington apenas pode ter certeza dos 2.641 mortos (3.500 entre os membros da NATO) e mais de 30 mil feridos, muitos deles amputados dos membros, porque quanto ao afastamento do perigo de novos ataques contra os EUA, isso não parece ter começado bem, tendo em conta a acção do ISIS-K no aeroporto de Cabul e no seio dos militares norte-americanos ali presentes.
Com a saída do último marine, os taliban iniciaram os festejos com tiros para o ar e com o seu porta-voz a dizer o óbvio: que está a ser vivido um momento histórico.
Zabihullah Mujahid sublinhou que se trata da "independência total" do Afeganistão com a saída do último homem dos EUA, tendo outro dos lideres taliban, Anas Haqqani, notado a honra que é assistir a este momento após 20 anos de "jihad, trabalho duro e sacrifício sem fim".
Os tiros para o ar eram o som da alegria taliban. Agora resta esperar para ver o que vale o seu verbo.