Afinal, quando se pensava que as batatas quentes já tinham saltado todas da frigideira a ferver com os documentos "top secret" do Pentágono que na semana passada vieram a lume, criando um burburinho mundial e obrigaram a Casa Branca a entrar em "modo de crise" para reduzir danos, eis que estes revelam ainda que Washington está farto da "simpatia" que o Secretário-Geral da ONU, o português António Guterres, mostra quando está em contacto com Moscovo.
Os norte-americanos, segundo um dos documentos estampados nas redes sociais, e que são já uma das mais graves fugas de informação das secretas dos EUA, não estão a gostar da forma como Guterres está a negociar com a parte russa o acordo sobre o corredor marítimo no Mar Negro que permite desde Julho do ano passado a saída de milhões de toneladas de cereais que estavam retidas nos portos ucranianos devido à guerra que começara meses antes, em 24 de Fevereiro com a invasão russa.
Isto é importante, porque, entre uma vasta lista de outras razões, foi António Guterres que deu a cara, em primeira instância, pela campanha de pressão mediática internacional sobre Moscovo para libertar esse corredor do Mar Negro porque milhões de pessoas estavam em risco de morrer à fome em vários países africanos, levando o Presidente Vladimir Putin a ceder, embora, como se pode verificar aqui, aqui e aqui, desses cereais que iriam salvar África da insegurança alimentar severa, apenas uma ínfima parte efectivamente seguiu para o continente.
Entretanto, os russos rapidamente vieram a público denunciar que o acordo, assinado em Julho de 2022, denominado Iniciativa do Mar Negro, que envolveu, em separado, russos, ONU e Turquia, e ucranianos, com as Nações Unidas e os turcos, tendo em Istambul um ponto fulcral de vigilância dos conteúdos dos navios graneleiros, porque as sanções sobre o transporte de cereais russos que deveriam ser levantadas, não o foram de facto.
Apenas os cereais ucranianos estavam a sair sem restrições, mantendo-se as restrições ao transporte de cereais e fertilizantes da Federação Russa, não porque as sanções incidissem sobre os alimentos russos, mas porque estavam ( e estão) a impedir que os navios sejam assegurados por companhias ocidentais ou ainda porque as embarcações russas encontram sucessivos obstáculos legais para atracar nos portos europeus ou de países sob pressão ocidental, especialmente norte-americana, para fechar o acesso ás docas a estes navios.
E, agora, segundo o porta-voz do Kremlin, Dmitri Peskov, veio dizer que Moscovo não volta a prolongar este acordo do Mar Negro se a parte que diz respeito aos cereais e fertilizantes russos não for cumprida como está plasmado naquele documento, que foi estendido em Março por mais 60 dias e termina em meados de Maio.
Curiosamente, apesar desta situação que, aparentemente os russos estão a cumprir, até porque enquanto maior exportador de cereais e fertilizantes do mundo, tem todo o interesse em manter este acordo a navegar, os Estados Unidos não estão a gostar dos esforços que António Guterres está a fazer para garantir que o corredor marítimo do Mar Negro permanece aberto, segundo os documentos agora revelados, "está a ser muito simpático" com o Kremlin.
Para já, o que Guterres procura afanosamente é garantir que os russos, depois de Peskov ter avisado que "nenhum acordo se consegue manter de pé em apenas uma perna; precisa de duas pernas" e este tem apenas activa a perna ucraniana, não voltem a fechar a exígua faixa marítima por onde a sua totalmente dominante Armada do Mar Negro permite a passagem dos graneleiros em segurança como previsto no acordo de Istambul.
Dmitri Peskov acrescentou mesmo que, "tal como as coisas estão hoje, uma extensão do acordo não se mostra como muito provável", o que levou António Guterres a redobrar esforços para que os mercados internacionais continuem a receber as cargas vitais de grãos e fertilizantes ucranianos e russos, dois dos maiores exportadores do mundo de cereais.
Um dos trunfos dos russos quanto a este acordo é que o ocidente, pelo que parece, e os esforços de Guterres parecem atestar, já não vai poder pressionar Moscovo através dos media internacionais com a crise alimentar em África, visto que, como, alias, os russos têm denunciado, apenas uma ínfima parte dos cereais que foram desde Julho do ano passado exportados por este corredor marítimo, foram efectivamente para portos do continente africano ou dos países asiáticos mais pobres... e quase na totalidade em cargas pagas e fretadas pelas Nações Unidas na condição de ajuda humanitária.
Das quase 11 milhões de toneladas de cereais exportados pela Ucrânia entre Agosto de 2022 e Março de 2023, segundo dados da ONU, apenas 380 mil toneladas tiveram como destino países africanos ou asiáticos pobres, como o Afeganistão ou o Iémen.
Embora este seja o cenário de fundo com que Guterres lida para reduzir as possibilidade de uma crise humanitária de grandes proporções, especialmente em África, onde se ergue a "tempestade perfeita" da possível redução da disponibilidade de cereais nos mercados - se Moscovo fechar o corredor do Mar Negro de novo -, com a tragédia da seca prolongada, que impede colheitas mínimas já há meia dúzia de anos em países como o Quénia, a Somália, a Etiópia, a Eritreia... os EUA mostram estar irritados com a simpatia do SG das Nações Unidas com os russos.
Com efeito, os documentos do Pentágono mostram a forma como Washington teve acesso a uma conversa entre Guterres e um seu adjunto, e, de acordo com a BBC, o chefe da ONU revelou nessa conversa os seus esforços para melhorar a capacidade de Moscovo também exportar os seus cereais, como, de resto, o acordo de Istambul prevê sem dúvidas, tendo revelado ainda que faria esse esforço mesmo que isso envolvesse indivíduos entidades russas sob sanções ocidentais.
Mas não é essa apenas a razão do mal-estar dos EUA com Guterres... segundo a BBC, Washington também teve acesso a uma conversa entre o SG da ONU e a presidente da Comissão Europeia, a alemã Ursula von der Leyen, o elo maior da correia de transmissão dos EUA na Europa ocidental, onde o português terá mostrado algum incómodo com a vontade europeia de adquirir mais armas para a Ucrânia porque isso incorre na evidência de um prolongamento do conflito sem fim à vista.
Sobre esta questão da posição de Guterres face ao acordo dos cereais, o comentador da CNN Portugal especialista em questões de geoestratégia, major general Agostinho Costa, a posição dos EUA é difícil de perceber, porque um acordo tem dois lados, no mínimo, e quando alguém procura garantir que as condições garantidas para esses mesmos dois lados são cumpridas, não pode ser acusado de estar a ser mais ou menos simpático com um ou o outro lado, está apenas a pugnar para que o acordo seja cumprido.