O que está a abalar os alicerces do Kremlin já não é apenas que a Rússia esteja novamente sob condição de país ocupado militarmente (ver links em baixo), como já não sucedia desde a II Guerra Mundial, quando a Alemanha nazi chegou às portas de Moscovo, mas porque, afinal, em causa está um objectivo de enorme complexidade e risco, que é a tomada de assalto da central nuclear de Kursk.
Embora os reforços enviados para o local, nas horas seguintes ao choque gerado pela entrada fulgurante de forças ucranianas no território russo, na passada terça-feira, 06, fora do mapa da guerra como o conhecíamos até ali, estejam a conseguir, segundo a TASS, suster o avanço ucranianos, a proximidade das forças de Kiev à infra-estrutura nuclear está a tirar o sono no Kremlin.
Os comandantes das Forças Armadas russas foram, segundo diversos relatos nos media internacionais, apanhados de surpresa e foi ainda em estado de choque que tiveram de informar o Presidente Vladimir Putin que a Federação Russa foi invadida por um país estrangeiro, estando à beira de perder não apenas a face mas também ficar na condição de poder ser chantageado se as unidades militares ucranianas conseguirem mesmo tomar a central nuclear de Kursk.
Além disso, são cada vez mais evidentes os sinais de caos entre as forças russas, com dezenas de militares feitos prisioneiros por terem sido apanhados de surpresa ou por inexperiência, há imagens terríveis de camiões repletos de soldados mortos, apanhados numa emboscada ou atacados por drones ucranianos, mostrando fragilidades do lado russo que só tinham sido vistas nos episódios, alguns mesmo tragicamente caricatos, do início da guerra, em Fevereiro de 2022.
Alguns objectivos mais evidentes foram conseguidos com sucesso pelos estrategas ucranianos, desde logo o regresso da guerra às capas dos grandes jornais ocidentais, de onde tinha saído com as sucessivas vitórias russas nas frentes de batalha de Lugansk e Donetsk, o que era essencial para manter o assunto nas mesas de trabalho dos aliados americanos e europeus, de quem KIev depende para obter armas e dinheiro.
Mas o mais importante, como tem sido, de forma crescente, analisado por analistas tanto ocidentais como do lado russo, é que além de ter gerado o caos nas hostes russas, noites sem dormir no Kremlin, a Ucrânia está, ou esteve, à beira de ocupar a central nuclear russa de Kursk, o que seria um estrondoso feito militar, mas, essencialmente político.
Isto, porque, com a inevitável chegada da guerra à mesa das negociações, como é já pretendido pelos aliados ocidentais de Kiev, onde, na Europa, com destaque para a Alemanha e para a França, os efeitos na economia são já um pesadelo que ninguém esconde, e nos EUA, com o aproximar das eleições, onde a recessão económica está à espreita e a dívida ganha foro de papão, Kiev precisa urgentemente de ter do seu lado moedas de troca com forte valor facial.
Os analistas coincidem na ideia de que o Presidente Zelensky, se conseguir contornar a pressão interna contra as negociações feita pelos elementos mais radicais neonazis que o rodeiam, e dominam parte do aparelho militar, como as famosas Brigada Azov ou a Ala Direita, já tem para troca coisas como o eventual desligar dos processos judiciais contra dirigentes russos nos tribunais internacionais ou abdicar de putativas indemnizações de guerra.
Mas ter para usar nesse "negócio" algo mais palpável, como território russo para trocar por território ucraniano ocupado, com o "plus" de nessa geografia negocial estar uma central nuclear, que poderia ser, por exemplo, trocada pela central nuclear de Zaporizhia, nas mãos dos russos desde Março de 2022, seria a cereja no topo do bolo.
O 5º elemento
Há, todavia, neste cenário algo de extremamente complexo de analisar mas que permite a admissão de que por detrás do palco já correm conversações de segundas linhas para se chegar a uma saída airosa para esta guerra em ambos os lados da barricada.
O facto de ter sido efectivamente muito fácil aos ucranianos entrarem em Kursk, mesmo depois de dois anos e meio de ensinamentos, e de Kiev já ter feito o mesmo quando retomou parte da área ocupada em Kharkiv pelos russos, permite elucubrar no sentido de um acordo prévio para permitir a Zelensky ter a tal moeda de troca.
Nesse sentido, em Moscovo, onde a guerra também começa a dar sinais de estar a cansar a sociedade, e ainda com o inevitável efeito das sanções a chegar ao bolso das famílias russas, Putin teria igualmente uma justificação para alienar parte de duas das quatro regiões anexadas em 2022, sendo que a Crimeia jamais será metida no pacote negociável, nem sequer Lugansk e Donetsk.
Mas o mesmo não se pode dizer de Kherson e Zaporizhia, que inicialmente não estavam nos planos de guerra do Kremlin, podendo assim servir perfeitamente como matéria negociável, exigindo Putin apenas condições de compromisso com a cultura e a língua russa, além da segurança dos cidadãos russófilos destas geografias.
Se tal cenário, mesmo que possa parecer um "cisne negro", vier a ser entabulado, então, tanto em Kiev como em Moscovo, haveria matéria de facto para aliviar as vergonhas e as honras da casa, embora tal consubstancie efectivamente uma vitória russa.
Isto, visto que todos os objectivos definidos no início do conflito estariam satisfeitos, excepto a questão da desnazificação do regime ucraniano, porque a neutralidade ucraniana, mantendo-se fora da NATO, é já um dado adquirido, porque o próprio Presidente Zelensky já o assumiu no passado, sendo a retórica contrária posterior apenas para efeitos discursivos no contexto do conflito.
Outro dado que permite consolidar esta hipótese é que em Moscovo, apesar da retórica normalmente balofa do antigo Presidente Dmitri Medvedev, sobre a necessidade urgente de "dar uma lição a Kiev" para não repetir esta ousadia de Kursk, e depois de Putin reunir o Conselho de Segurança, a reacção tem sido medíocre do ponto de vista do viço militar que dispõe mas a ele não recorre, como, por exemplo, a deslocação de reservas que, uma semana depois, dizem os media russos que estão a caminho mas não chegaram ainda.
A palavra de Maria
E outra curiosidade é o facto de uma das reacções oficiais mais mediatizadas pelo universo dos media russos,é a de Maria Zakharova, a porta-voz do Ministério dos Negócios Estrangeiros, que veio afirmar que a resposta russa "não vai demorar muito mais".
Isso, quando é já por demais evidente que não só está a demorar como é uma demora inexplicável face à existência de reservas estratégicas para o efeito e de as chefias russas terem o exemplo do que sucedeu no passado, excepto se se estiver num plano diferente de estratégia, semelhante ao xadrez, ou mesmo do póquer.
Zakharova veio notar, citada pela TASS, que Moscovo "condena de forma veemente os actos terroristas bárbaros perpetrados pelos ucranianos em Kursk, destruindo infra-estruturas civis, matando e intimidando civis".
"Que ninguém duvide de que os protagonistas destes crimes e os seus instigadores estrangeiros, serão responsabilizados e a resposta russo não vai demorar muito", avisou, antes de ter exigido à comunidade internacional que condene os actos terroristas de Kiev.
Kiev, ou sejam, Volodymyr Zelensky, que já veio publicamente dizer que esta incursão em território russo fora do "velho" mapa da guerra "para que os russos provem de um veneno semelhante ao que deram a provar aos ucranianos com a sua invasão de 2022.
Entretanto, mesmo nos media ocidentais que mais empenhadamente veiculam os interesses de Kiev, como The Guardian, Financial Times ou The New York Times, repetem-se os artigos de opinião e notícias sobre o descontentamento ocidental com a opção ucraniana de lançar este ataque em Kursk.
Isto, porque nele foram empregues, alegadamente, as últimas reservas em forças especiais, desviadas da frente de guerra em Lugansk e Donetsk, onde os russos ganham terreno dia após dia, aproveitando as fragilidades das forças ucranianas, com falta de recursos humanos e com o armamento cada vez mais em falta.
Segundo os media russos, que citam o Ministério da Defesa da Federação, a Ucrânia empregou pelo menos três brigadas nesta operação de Kursk, entre 5 a 9 mil soldados, tendo já sofrido, entre mortos e feridos perto de 2 mil, em apenas seis dias, com perto de uma centena de veículos blindados, de combate e de transporte de infantaria, destruídos.
Do lado russo, a informação sobre baixas é menos "oficial", mas a partir das imagens divulgadas nos canais das redes sociais, incluindo de bloggers de guerra russos, mostrando largas dezenas de corpos de militares russos, é evidente que o número é igualmente elevado.
"fogo" nuclear
Entretanto, depois de mais de um ano passado sobre os bizarros episódios de explosões na central nuclear de Zaporizhia, ocupada pela Rússia, claramente lançados pelos ucranianos, não apenas porque os russos não se auto-infligiriam ataque com morteiros, mas porque isso ficou demonstrado pela presença no local de elementos da Agência Internacional de Energia Atómica, voltaram a emergir chamas junto a esta infra-estrutura.
Rapidamente os media ocidentais deram asas às acusações de Kiev de que as explosões na central nuclear ocupada pela Rússia, em Zaporizhia, eram de autoria dos... russos, embora as evidências sobre a origem ucraniana do drone kamikaze que ali caiu sejam claras.
Apesar de os seis reactores da maior central nuclear da Europa estarem desligados há quase dois anos, o risco de um acidente nuclear é grande se os ataques militares se repetirem, visto que o local guarda ainda toneladas de resíduos nucleares e as instalações possuem ainda material por usar.
O governador de Zaporizhia, Evgeny Balitsky, citado pela RT, já veio garantir que o fogo está controlado, adiantando que as chamas ocorreram na área do sistema de arrefecimento da planta, enquanto a AIEA emitia um comunicado onde adverte para o risco sério de um acidente nuclear relevante.
Entretanto, Maria Zakharova veio questionar o porquê de os países ocidentais não condenarem claramente aquilo que é um perigos ataque terrorista a uma unidade nuclear como aquele que acaba de ser perpetrado pelos ucranianos.