No dia seguinte, quando cheguei a casa para almoçar, avisei o porteiro do prédio, para me chamar quando passasse pela rua um jovem de 10 aos 14 anos. O Homem cumpriu a missão. Cinco minutos depois, a campainha tocou. Trazia-me o garoto. Era um engraxador de sapatos e, quando lhe perguntei o nome, reparei que não estava tranquilo. Penetrei na sua alma e vi que a pergunta estava nos olhos: afinal o que querem de mim? Entreguei-lhe dois pares de sapatos para engraxar e fui falando com ele. Como te chamas? David, respondeu-me. Só? Perguntei-lhe. És aqui de Luanda? Não, respondeu-me, venho da província de Benguela, mas moro na cidade do Lobito. Coincidência também sou natural do Lobito, uma cidade portuária que em tempos era considerada a sala de visitas de Angola. Acenou com a cabeça e mostrei-lhe o meu Bilhete de identidade.
Confirmou a minha origem e aí o seu temor abrandou um pouco e, enquanto ia engraxando os sapatos, foi-me contando a sua história. Seu nome completo é David Kalembe, faz parte de uma família, em que vive com os pais e um irmão. Seu pai é taxista de motorizada, um kupapata, sua mãe é vendedora no mercado da Tchapanguela, vende peixe seco meia cura, vivem no Alto Liro. As dificuldades da vida são grandes e por isso mesmo meteu-se num autocarro para Luanda, ele e o irmão Raul vêm arranjar algum dinheiro, regressam dia 23 de Dezembro para o Lobito, para no dia do Natal cearem todos juntos.
Perguntei-lhe se gostava de futebol e se sabia que a Selecção de Angola, os Palancas Negras, se tinha apurado para o Mundial. Aí o rosto alegrou-se. Respondeu-me que tinha acompanhado pela Televisão o jogo em Kigali, no Ruanda e continuou sem parar: o senhor sabe, eu estava à espera do golo de Angola e quando o Mantorras segurou a bola e passou para o Zé Kalanga e este centrou para o Akwá marcar o golo, Aué! (expressão de contentamento) eu fiquei todo contente. Vamos para o mundial e Angola vai ganhar. Olhei para ele e pensei: não é proibido sonhar quando se é novo e ingénuo. Sabes onde fica a Alemanha? Perto de Portugal, não é? Mais ou menos. Cobra por cada par de sapatos 20 kwanzas, quando regressa ao bairro onde alugou um quarto, leva normalmente 400 kwanzas no bolso, o que equivale a 4 dólares americanos.
Quando sai de casa de manhã, vem a pé e faz cerca de 7 quilómetros, à tardinha quando regressa, vai de candongueiro (uma carrinha que leva cerca de 10 passageiros). Sei que dificilmente o tornarei a ver, ele palmilha a cidade de bairro a bairro, sempre a girar, mas ficaram-me nos ouvidos as suas últimas palavras: acredite senhor, Angola vai ganhar o Mundial e o Mantorras vai marcar. Deus queira que sim e já agora do íntimo do coração: David, leva para o Lobito algum dinheiro, para ajudares os teus familiares a terem um Natal diferente e se o Mantorras não marcar e Angola não ganhar, não interessa, o importante foi mesmo conhecer-te.
O Jornalista Mexicano respondeu-me uns dias depois a dizer que tinha gostado da crónica e terminou dizendo: "Si nos vemos en Alemania, te llevaré un Tequila. Como vez?" Não é difícil traduzir, mas nunca mais soube dele, nem da famosa Tequilha, do jovem David, esse sim, gostaria de o tornar a ver.
Estamos no mês de Dezembro, em breve virá o Natal, o dia em que os cristãos comemoram o nascimento de Jesus Cristo. Faço um esforço de memória e a sua trajectória desde o tempo em que era uma criança, até os dias de hoje, passados quase setenta anos de vida, não me deixa minimamente satisfeito. Recordo-me que aos quatro ou cinco anos, punha o meu sapatinho do Natal, para receber as prendas que acreditava piamente serem trazidas pelo Pai Natal e à meia-noite lá estava eu pontualmente, para receber a minha prenda e raramente a bola de futebol não aparecia, era o meu presente favorito. Mais tarde, os anos iam passando e eu via que afinal ao meu redor havia meninos que apesar da data e do Pai Natal, a bola não aparecia e eu gostava de partilhar a bola com eles.
Houve um momento que descobri que os pais desses meninos passavam por muitas dificuldades económicas e a vida foi avançando. Hoje, vou descobrindo que aqueles tempos comparados aos actuais me deixam mais triste, mas não deixo de ter Fé que melhores tempos virão, que o dia do Natal deve ser um dia de reconciliação com o teu irmão, com o teu pai, com a tua mãe, com os teus vizinhos, reconciliação contigo próprio, um exame de consciência poderá dizer-nos qual tem sido a trajectória da nossa vida, se positiva, se negativa, mas sabendo sempre de antemão que nada está perdido, tudo pode ser recuperado, bastará que nos arrependamos e abramos o nosso coração a Deus, um gesto perfeitamente fácil e ao alcance de todos. É importante ter uma mesa farta, com todos os ingredientes do Natal, mas mais importante que tudo isso, acreditem, é ter uma Alma lavada, uma consciência tranquila, para que todo o processo digestivo se faça calmamente, sem sobressaltos e posteriormente entrarmos no sono, sonhando levemente, sem crispações, antes parecendo um navio, navegando em mares tranquilos, sem paragens abruptas.
Aproveitamos para desejar a todos os angolanos um Natal tranquilo, de paz e amor.