Este mito pode ser utilizado como uma analogia para o dilema enfrentado pelo Tesouro Nacional, pela SONANGOL EP e pelos cidadãos face à possível eliminação dos subsídios aos combustíveis. O Tesouro assume o papel de Ulisses, sendo forçado a navegar entre duas ameaças. De um lado, encontra-se a SONANGOL, representando Escila, que se depara com sérias dificuldades de tesouraria devido à falta de pagamento dos subsídios ao combustível por parte do Estado. Do outro lado, estão os cidadãos, simbolizando Caríbdis, que enfrentam o aumento do custo de vida e a inflação provocada pela retirada dos subsídios. No entanto, se o Tesouro continuar a financiar os subsídios, corre o risco de afundar-se em défices orçamentais insustentáveis. Tal como no mito, a situação não apresenta uma solução ideal: qualquer decisão implica sacrifícios. O verdadeiro desafio, portanto, não é evitar o problema, mas sim encontrar um equilíbrio que minimize os danos e permita a continuidade das operações de forma viável.
O Fundo Monetário Internacional (FMI) aponta que, com as eleições presidenciais previstas para 2027, o ambiente político pode atrasar a implementação das reformas essenciais, nomeadamente a eliminação gradual dos subsídios e a mobilização de receitas internas, enquanto acelera os gastos de capital (FMI, 2025). No entanto, em reação ao insistente apelo do FMI e a grave situação de liquidez financeira da SONANGOL, o Executivo do Presidente João Lourenço procedeu o ajustamento do preço de venda ao público do gasóleo para 300,00 kz/litro a partir do dia 24 de Março. Ora, a presente iniciativa parece anedótica quando levamos em consideração as razões que motivam os insistentes apelos do FMI para se proceder com a remoção gradual dos subsídios ao combustível.
Ora vejamos,
Os indicadores dos subsídios do Estado, conforme a tabela abaixo referente ao período entre 2019 e 2023, revelam uma dinâmica de elevado risco, tanto para a sustentabilidade das finanças públicas como para a viabilidade económica e financeira da SONANGOL. Em 2019, o valor total de subsídios ascendeu a 2.010,1 mil milhões de kwanzas, o que representou um impacto relevante, equivalente a 6,5 por cento do PIB daquele ano. Este montante atingiu o pico de 4.463,8 mil milhões de kwanzas em 2022, o que ascende a 7,7 por cento do PIB, antes de diminuir para 2.560,5 mil milhões de kwanzas em 2023, ou seja, 3,4 por cento do produto. A elevada despesa com subsídios é economicamente ineficiente, dado que consome recursos orçamentais que poderiam ser mais bem alocados para outras áreas sociais e de desenvolvimento, por exemplo a saúde, a educação e as infraestruturas.
No entanto, é importante destacar que, desde 2019, ano em que a Agência Nacional de Petróleo e Gás (ANPG) entrou em funcionamento e assumiu, entre outras responsabilidades, as funções de concessionária, o Tesouro deixou de realizar os pagamentos regulares dos subsídios à SONANGOL. Em verdade, até antes de 2019, a petrolífera deduzia, à partida, o valor do subsídio da receita da concessionária a ser entregue ao Tesouro. Contudo, a partir de 2019, a SONANGOL deixou de ter o controlo da receita da concessionária e passou a depender de reembolsos a serem efetuados pelo Tesouro, o que tem representado um desafio considerável tanto para os responsáveis do Ministério das Finanças (MINFIN) como para os gestores da petrolífera. A partir da análise das demonstrações financeiras da SONANGOL referentes aos exercícios económicos de 2019 a 2023, é possível concluir que o MINFIN mantém uma dívida superior a 10 mil milhões de dólares americanos para com a petrolífera, incluindo os subsídios.
A dívida do Estado à SONANGOL apresenta um risco significativo para a liquidez da empresa. Relativamente ao subsídio, o montante devido pela administração pública à SONANGOL variou de 1.931,1 mil milhões de kwanzas em 2019, atingindo o pico de 2.096,8 mil milhões de kwanzas em 2022, antes de cair para 193,5 mil milhões de kwanzas em 2023. Esta dívida compromete a capacidade da SONANGOL de honrar os seus compromissos financeiros e de operar com a solvência necessária.
Por outro lado, a remoção dos subsídios, como seria de esperar, acarreta um elevado custo social, com um potencial imenso para gerar tensões na sociedade civil, dada a sua repercussão directa na formação dos preços de bens e serviços essenciais. Exemplos à parte, temos os custos com o transporte, tanto urbano como rural, e os custos de produção e comercialização de alimentos, que se tornarão absolutamente insustentáveis para uma população já em dificuldades económicas e sem recursos suficientes para lidar com os efeitos de tal ajustamento. E a medida agora anunciada? Não passa de um verdadeiro paliativo que não resolve absolutamente nada, uma solução temporária que não toca nem de raspão nas causas estruturais do dilema económico. Trata-se, isso sim, de um dilema digno de Ulisses, onde a escolha entre dois caminhos igualmente problemáticos não resolve, claro, o problema de fundo. Pasme-se!
A verdade incontornável é que, sem o subsídio, os preços dos combustíveis - gasolina e gasóleo - seriam de aproximadamente Kz 670 e Kz 660 por litro, respetivamente. Isto significaria mais do dobro dos preços praticados actualmente. Ora, o ajustamento implementado não resolve em nada a situação do Tesouro nem da SONANGOL, e, ainda mais problemático, agrava a situação do cidadão comum. A situação paradoxal atinge níveis alarmantes, com os encargos relacionados com os subsídios a ultrapassarem os impostos que a SONANGOL deveria pagar anualmente ao Estado. A petrolífera, num irónico jogo de equilíbrio, faz um "acerto de contas" entre o valor da subvenção a receber e os impostos a pagar, mas, no final, o Estado continua em situação devedora. Como referido acima, o montante em dívida ultrapassa os 10 mil milhões de dólares americanos, uma quantia que coloca o erário público numa posição extremamente delicada e expõe as fragilidades das finanças públicas do país, criando um ciclo vicioso que, ao invés de ser corrigido, se perpetua. Este cenário só reforça a necessidade urgente de uma reforma estrutural que vá além de soluções paliativas e que, de facto, possa estabilizar a economia e reduzir a dependência dos subsídios.
A solução para a actual situação caótica das finanças públicas e das dificuldades de liquidez da SONANGOL passa, inevitavelmente, por enfrentar o estreito, como na trilogia de Ulisses, entre Escila e Caríbdis, o que implica fazer sacrifícios, mas de forma a garantir a sustentabilidade a médio prazo. Um primeiro passo crucial seria realizar um ajustamento nos preços dos combustíveis que, num momento inicial, igualasse o valor da subvenção do Estado aos impostos a pagar pela petrolífera. Este ajustamento contribuiria para travar, de forma imediata, o crescimento da dívida do Estado a favor da SONANGOL, prevenindo a sua perpetuação. Simultaneamente, o Estado deveria proceder à titulação da dívida que consta no balanço da empresa, transformando as contas a receber em ativos tangíveis, por meio da emissão de Obrigações do Tesouro.
A eventual preocupação com o crescimento do endividamento público com essa emissão directa de títulos é, no mínimo, anedótica, uma vez que a dívida já existe, embora não seja reportada de forma transparente nas estatísticas das contas públicas - "a dívida oculta angolana". Isto implica que o stock da dívida pública, tal como reportado aos organismos nacionais e internacionais, está, na prática, maquilhado em pelo menos 10 mil milhões de dólares. Assim como Ulisses, que teve de navegar entre os perigos de Escila e Caríbdis, o Executivo do Presidente João Lourenço tem de fazer sacrifícios no curto prazo, mas assegurando que a SONANGOL, a galinha dos ovos de ouro do Estado, não quebre sob o peso dos atrasados do Estado e continue a realizar os investimentos no sector petrolífero. Como afirmou John Stuart Mill (1806-1873), filósofo e economista britânico, "a melhor maneira de garantir a felicidade é buscar o bem maior para o maior número."n
*Professor Auxiliar de Economia e Investigador
Business and Economic School - ISG
Bibliografia
• Angola: 2024 First Post-Financing Assessment-Press Release; and Staff Report July 15, 2024.
• SONANGOL EP: Relatório e Contas 2023 - Junho de 2024.