Ao proferi-la, o antigo porta-voz de José Eduardo dos Santos, tem toda a razão. Ao proferi-la, o antigo preso político do Campo do Tarrafal, obriga-nos a reflectir sobre as consequências do uso da arrogância por parte das nossas lideranças partidárias.
Obriga-nos a não ficarmos indiferentes perante o efeito boomerang do uso da linguagem ameaçadora em tempo de pré-campanha eleitoral. Obriga-nos a avaliar o efeito devastador de respostas extremistas que podem desembocar em manifestações de rua ou em actos de repressão.
Obriga-nos a centrar as nossas preocupações em políticos que tardam a perceber que a democracia não se exerce com ordens, mas, como explicam Steven Levitsky e Daniel Ziblatt na sua obra "Como morrem as democracias", com "negociações, compromissos e com concessões".
Obriga as nossas lideranças partidárias - pelo menos assim esperamos - a concluírem que, relativamente ao exercício do poder, existe um grave equívoco político quando pensam que têm mais vantagens em serem temidas em vez de respeitadas.
Obriga os nossos políticos a perceberem que se "os revezes são inevitáveis, as vitórias são sempre parciais". Obriga ainda a que entendamos que é precisamente essa visão que falta tanto às nossas lideranças partidárias que acumulam o exercício do poder há décadas, como àquelas que, há mais de quarenta anos, esperam e desesperam para fazer o mesmo.
É por essa falta de visão que a generalidade dos políticos do MPLA não consegue interiorizar que, como produto natural da sua erosão, o tempo da popularidade permanente há anos que desapareceu.
É também por essa falta de visão que a generalidade dos políticos da UNITA não consegue igualmente aceitar que, apesar de ser o partido líder da oposição e de se auto-atribuir o favoritismo nas próximas eleições, não pode nem deve considerar liquidada já a factura para franquear as portas do Palácio.
É ainda por essa falta de visão que, da parte de quem está no poder, permanecem vivas as resistências à "desempelização" das instituições públicas.
Mas, da parte de quem corporiza a liderança da oposição, é também por essa falta de visão que, entre os seus círculos mais raivosos, prevalece a tentação para amanhã podermos vir a assistir à "unitização" da sociedade.
Esquecem-se ambos, porém, de que Angola não é pertença de nenhum partido político. Esquecem-se ambos de que esse sentimento de pertença colectivo é e deve ser exclusivamente dos cidadãos. Esquecem-se ambos de que os partidos passam, mas a sociedade e a cidadania ficam.
Porque chegamos a este ponto?
Porque, afinal, um e outro, ainda não se libertaram das sequelas de um passado histórico que continua a condicionar e até a atrofiar a capacidade de se adaptarem a uma nova realidade político-sociológica.
Duas décadas depois do fim da guerra, era suposto percorrermos a estrada da democracia sem novos traumas, sem a ameaça de vingança, sem presos políticos e sem a perda de vidas humanas por parte de quem professa e defende ideias diferentes.
Duas décadas depois do fim da guerra, era suposto assistirmos à solidificação do cimento da democracia, ao exercício independente dos poderes e à convivência partidária sob a mais ampla pluralidade de informação e a mais ampla divergência de opiniões.
Mas, duas décadas depois do fim da guerra, voltamos a viver tempos nebulosos. Duas décadas depois do fim da guerra, continuamos a ser capturados pela desconfiança mútua e a ver o país sucumbir lentamente perante a atmosfera de grande hostilidade que caracteriza a relação entre os nossos dois principais partidos políticos.
Porque chegamos a este ponto?
Porque, mesmo depois de termos substituído há vinte anos a troca de tiros pela troca de palavras, a verdade é que as sementes da guerra nunca deixaram de empoeirar a mente dos bandos de radicais que estão entrincheirados tanto na UNITA como no MPLA.
Porque, mesmo depois de estes dois antigos movimentos de libertação terem proclamado a sua adesão aos valores democráticos, a verdade é que a génese autoritária das suas velhas lideranças nunca desapareceu da sua geografia política.
Porque, mesmo depois de ter sido reestabelecida a paz, a verdade é que continuamos a ter dificuldades em dar mostras de que o principal vencedor da guerra foram os angolanos, independentemente da sua filiação ou não filiação partidária.
Porque mesmo depois de termos vencido a guerra, a verdade é que o combate político continua a revelar que, em certa medida, nos mantemos prisioneiros da guerra.
É por esta razão que, até hoje, os nossos líderes partidários em vez de se tratarem como simples adversários, se posicionam no palco como se fossem inimigos e como se o debate político devesse ser transformado numa batalha campal.
É por esta razão que se é verdade que estamos a sair de uma longa recessão económica, não menos verdade é que, desde 1992, nunca deixamos de viver em "recessão democrática" para utilizar uma expressão do cientista político norte-americano Larry Diamond.
É por esta razão que, como aconteceu no Perú de Fujimori, muitos políticos desejariam ver Angola continuar a ser "um país governado por minorias perigosas, oligopólios, panelinhas e lobbies"...
É por esta razão que nos últimos vinte anos continuámos a assistir ao enfraquecimento das instituições críticas, como o poder judicial e a imprensa. É por esta razão que nos últimos vinte anos continuámos a assistir à prostituição dos postulados de um Estado de direito.
É por esta razão que a escalada da intolerância e do autoritarismo, de parte a parte, nunca verdadeiramente desapareceu da nossa sociedade. É por esta razão também que a tentação para novas derivas autocráticas continua presente de um e do outro lado.
É ainda por esta razão que as nossas lideranças partidárias, sem o assumirem publicamente, permanecem agarradas a um pressuposto profundamente anti-democrático:
se para o MPLA, a UNITA "não pode" ganhar as eleições, para a UNITA também o MPLA "não pode" continuar a governar o país. Nesta matéria, comportam-se como verdadeiros irmãos siameses!
Ora, nem o MPLA tem legitimidade para decretar como imperativa a impossibilidade da UNITA ganhar as eleições, nem a UNITA tem legitimidade para impor o veto à permanência do MPLA no poder.
Ambos os partidos desfraldam a bandeira da democracia, mas, um e outro, esquecem-se de que só o escrutínio do povo pode sentenciar o resultado das eleições. Esquecem-se ainda de que à boca das urnas, a última palavra cabe unicamente àqueles que detêm o poder da soberania: os eleitores.
Com a sentença popular extraída no final do pleito ignorada muitas vezes, o passado para a maioria dos angolanos nunca foi sorridente e o presente ainda não se desenha como a apólice de seguro de que precisam para encetar uma transição verdadeiramente tranquila.
Sendo duvidosa a pureza democrática das nossas lideranças partidárias, não podemos, de um lado, continuar a ser vítimas de um crescendo de perversos indícios de controlo securitário da nossa vida pública e de um escandaloso desfile de desonestidade na gestão (desigual) da comunicação social.
Do outro lado, não podemos também continuar a ser presas à mercê de uma perigosa tentação populista para o apadrinhamento, à socapa, de impulsos extremistas que podem provocar uma ruptura revolucionária de cariz altamente perturbador.
Não podemos partir para uma pré-campanha eleitoral correndo o risco de ir a votos reféns da arrogância de um e de outro partido. E não vale a pena pensar que a arrogância de um é mais legítima do que a arrogância do outro.
Tanto uma como outra não servem em democracia! Por não servirem - mas, por insistirem em sobrepor-se ao diálogo - é que se torna forçoso raspar a língua de alguns políticos para que não expilam disparates incendiários.
Por não servirem é que se torna forçoso levá-los a privilegiarem discursos cuidadosamente escritos em vez de abraçarem improvisos carregados de um sentimento de exclusão e de ódio que pode fazer espoletar "um incêndio de terríveis proporções".
Por não servirem é que, vinte anos depois, ainda não conseguimos passar a via sacra. E por não termos passado essa via sacra é que os valores da tolerância e da liberdade de expressão, numa sociedade que deveria estar assente numa cultura aberta e diversificada, continuam a estar seriamente ameaçados.
Por não termos passado essa via sacra é que o debate e a construção de consensos continuam a ser aniquilados por uma "elite obscura"- como lhe chama o filósofo francês Michel Foulcault - que não percebe que a pulverização de um discurso recheado de intimidação, de violência e de valores anti-democráticos só acelera o afastamento dos cidadãos da sintonia deste cumprimento de onda.
Porque chegamos a este ponto?
Porque, vinte anos depois do fim da guerra, nunca fomos capazes de assumir a necessidade de promovermos uma ampla discussão em torno do nosso enorme défice de reflexão democrática e de pensamento político estruturado. É hora de pararmos e de pensarmos nisso.
É hora de reconhecer que, um primeiro passo neste sentido, acaba de ser dado com a convocação de um debate sobre a transparência eleitoral proposto pelo MPLA.
É hora da oposição liderada pela UNITA reconhecer que, perante esta saudável proposta, Angola está confrontada com a mais ousada iniciativa política levada a cabo pelo MPLA para avaliar a seriedade do processo que, pela quinta vez, nos há-de conduzir às urnas.
É hora de reconhecer que este debate realizar-se-á no momento certo para testar a boa fé de quem arvora a defesa dos interesses da nação sobre os interesses dos partidos. Como São Tomé, vamos ver para crer...