A discussão resvalou, inevitavelmente, para a actualidade política nacional, com destaque para o reforço da repressão protagonizada por quem devia ter como missão proteger os cidadãos, sobretudo neste ano eleitoral.
Não faltaram apelos para que os angolanos no País e na diáspora adiram em massa ao registo eleitoral, a fim de que possam votar nas eleições gerais, agendadas para Agosto próximo.
Em Portugal, o apelo faz todo o sentido, já que a afluência aos balcões de registo eleitoral nos dois consulados (Porto e Lisboa) está muito aquém do esperado, segundo diversas fontes.
As descrições sobre a brutalidade nas prisões, a desumanização das cadeias e a violência contra os presos políticos, constantes da obra, fazem lembrar a tristemente célebre "frigideira" ou "holandinha" do campo de concentração do Tarrafal, onde o regime colonial fascista português torturava nacionalistas angolanos e de outros países que lutavam contra o regime de Salazar.
Sedrick de Carvalho denuncia, no seu diário de cárcere, a ilegalidade de todo o processo criado contra os activistas dos 15+2 e, consequentemente, do próprio regime, sublinhando a promiscuidade entre bófias, agentes do SINSE e oficiais da PGR, típica de estados securitários.
No debate e nas entrevistas, à margem do evento, as intervenções foram no sentido do reconhecimento de que o tão propalado novo paradigma em Angola não se concretizou, apesar da grande expectativa criada com a mudança de inquilino no palácio cor-de-rosa, em Luanda.
Se o anterior inquilino vivia numa redoma, limitando-se e confiando única e piamente no seu inner circle, incluindo em questões da actualidade internacional e visão do mundo sobre Angola, parecendo acreditar que Angola era a "placa giratória" por onde o mundo circulava, de acordo com a propaganda da TPA, a situação parece manter-se inalterada.
No debate, falou-se desse regime que continua a ser o entrave ao desenvolvimento e à democratização do País. Os participantes abordaram também a necessidade e urgência de a diáspora encontrar mecanismos que lhe permitam uma maior intervenção nas questões do País.
Em Abrantes, distrito de Santarém, 150 quilómetros a Norte de Lisboa, a apresentação ao público de "O Escárnio", de Mbomba Mudiatela, pseudónimo literário de Domingos da Cruz, docente e investigador, foi o pretexto para se falar de Angola ontem e hoje, bem como do seu futuro imediato.
O debate que se seguiu, bastante acalorado, incidiu sobre o fantasma imperial das continuidades coloniais estrutural e institucional, literatura e filosofia, universalismo e produção literários.
"O Escárnio", novela política, de certa forma autobiográfica, tem como personagem central um intelectual, académico, activista dos Direitos Humanos, o professor Verax Yan, cuja trajectória se confunde com o próprio percurso de vida de Domingos da Cruz, uma das figuras de referência dos 15+2.
É o retrato de um país - "República Democrática de Matubo" - miserável, inviável a médio e longo prazos, em que as pessoas vivem em condições deploráveis, com todas as características das ditaduras, nomeadamente a impreparação generalizada.
A desorganização organizada da sociedade, a prepotência de generais (militares) como regra, falta de liberdades de circulação e fixação, e meios de comunicação social capturados e transformados em caixas de ressonância e de propaganda do regime estão, igualmente, presentes na "República Democrática de Matubo".
"Talvez por considerar que o seu país, Angola, continua numa situação de não-mudança efectiva (mudança que o novo Presidente anunciara), o autor veicula o seu desencanto nesta alegoria de um país onde parece não haver redenção porque as poucas vozes dissidentes não encontram eco suficiente na população (controlada e conivente com o poder) e a elite é cúmplice e instrumento dos maiores desmandos do repressivo poder político", de acordo com Adolfo Maria, escritor e nacionalista angolano.
Na opinião do antropólogo português Miguel Costa, um dos apresentadores de "O Escárnio", os diversos elementos autobiográficos da obra de Domingos da Cruz cruzam-se com uma dimensão universal, na qual é possível identificar o endocolonialismo ou autocolonialismo.
Mais do que ser limitada pela incontornável dimensão autobiográfica, a obra, acrescenta o historiador e sociólogo Manuel Santos, outro apresentador do livro, "atinge uma perspectiva global ao destacar o papel do dinheiro como valor central das relações humanas, a violência e a força bruta como instrumentos recorrentes das autocracias, mas também o cinismo clássico e histórico da real politik e o seu eterno olhar parcialista".
O que terá mudado no País desde há cinco anos, desde que os presos políticos do grupo 15+2 foram "amnistiados" e libertados, depois de terem sido condenados a penas de prisão até 12 anos por "crime de actos preparatórios para a prática de rebelião e atentado contra o Presidente da República ou outros membros de Órgãos de Soberania"?
Esta questão encontra resposta nos dois livros referidos, cujos autores alertam para certo adormecimento da sociedade civil e partidos políticos que, muitas vezes, estão mais concentrados em pequenas questiúnculas ou mesmo em questões particulares que os afectam directamente, ignorando assuntos que preocupam a sociedade, em geral.
As duas obras, fontes primárias para a história política de Angola, são definidoras de um regime que tem na crueldade, na repressão bárbara, eixos fundamentais da sua sobrevivência e que entra num vale-tudo sempre que sente o seu poder beliscado.
Sem o mínimo de empatia para com a dignidade da pessoa humana, do cidadão em geral, mas particularmente de detidos e presos, independentemente da razão da sua detenção ou prisão, o regime exposto nos dois livros assemelha-se em matéria de cárcere ao regime colonial português.
Neste regime, o medo surge como instrumento de controlo da sociedade, impedindo os cidadãos de expressar a sua revolta contra as barbaridades do poder que vive de forma obsessiva a preocupação com a sua imagem externa. No país das tenebrosas "ordens superiores", o medo é a melhor arma de controlo das populações e aliado da repressão.
Traduz também a desorientação normativa e legislativa do poder que, ao arrepio das normas das comunidades, adopta medidas para um país africano como se estivesse a legislar para um estado europeu.
Como aconteceu com a absurda norma que exigia do visitante de presos políticos que apresentasse um documento oficial, donde constasse o mesmo apelido do preso que pretendesse visitar.
Isso apesar de, segundo dados oficiais, quase metade da população viver sem qualquer registo de nascimento. E entre os registados, nem sempre os filhos levam os apelidos das mães ou dos pais e onde os casamentos e relações de parentescos são sobretudo informais, caucionadas pela comunidade.
Habituado a comprar lealdades internas e, sobretudo, externas com os dividendos da exploração petrolífera, o regime e a sua abjecta crueldade "ficaram completamente expostos" com o processo 15+2, disse em entrevista o autor de "Prisão Política", sublinhando que "pela primeira vez", o poder angolano "viu-se desgastado e criticado, principalmente a nível internacional".
Num ano que se prevê de forte agitação política, numa altura em que se adivinham tempos politicamente difíceis no País, onde as instituições do Estado estão completamente capturadas pelo Poder, a diáspora vai vincando a sua posição em relação ao rumo do país.
As duas iniciativas em torno de dois livros de activistas políticos surgem, assim, como uma espécie de tiro da largada para os debates que a diáspora se propõe organizar sobre o País e as eleições que este ano, pela primeira vez na História de Angola, contam com votos dos angolanos no estrangeiro.