Não, não pensem que nos queixamos, mesmo sabendo que esta é das poucas profissões onde é decididamente muito pouco provável que sejamos felizes - alguns lapsos de alegria, nada mais...

Queixamo-nos do mundo que estamos a deixar como legado para as próximas gerações.

Queixamo-nos dos que o comandam, despudorada e selvaticamente, sem dó nem piedade, sem moral, sem princípios, sem valores. Apenas o capital, o monetário, o financeiro, o ter antes do ser, o amontoar sem aceitar dividir, perpetuando uma realidade verdadeiramente monstruosa que oprime, que provoca a fome, a miséria, a doença, o analfabetismo. Que impede o direito a uma vida minimamente digna, que permita cada ser humano a viver de cabeça erguida, sem ter de pedir esmolas nem recorrer à caridadezinha de que muitos tanto gostam, como se ficassem mais descansados com a sua própria (falta de) consciência.

E, no entanto, houve um tempo... Sonhos e utopias preencheram a humanidade, correram mundo, tomaram conta das cabeças e das mãos dos operários, dos camponeses, dos intelectuais, dos homens e mulheres que sucessivamente deram as suas vidas para o que o futuro fosse mais solidário, mais justo, mais dividido por todos. E que o fosso que separa cada vez mais os ricos dos pobres fosse substituído por uma sociedade que se tornou promessa e depois ilusão.

É. Houve esse tempo... É bem verdade que a necessidade da liberdade individual em conjunto com os interesses dos vários impérios financeiros - e, como sempre, com a ajuda proverbial de muitas das várias igrejas que pululam por todo o mundo - se sobrepôs a um projecto que não soube conciliar as necessidades colectivas com o desejo íntimo, instintivo, de autonomia e de livre pensamento.

Mas é possível - e o mundo provou-o nas décadas que se seguiram à segunda guerra mundial - que não era difícil conciliar o empreendedorismo individual com os direitos mínimos de cidadania para a maioria das populações, que era compensador o mercado funcionar regrado e controlado por um Estado forte, que deve manter entre mãos o controlo das grandes riquezas e das áreas estratégicas de cada país. Deixando para o privado o que ultrapassa as suas competências e o que pode ajudar a desviá-lo do seu contrato assinado com as populações, quando, votando, o assinam, autenticando os direitos e deveres de cada um. Do Estado para com o cidadão. E deste para com o Estado.

Infelizmente, particularmente na América do Sul, na Ásia e em África, algumas transformações vão-nos matando a esperança de que seja possível, a curto prazo, pôr termo a toda esta montagem criminosa do capital especulador, seja ele norte-americano ou europeu. Que está a fazer regressar parte considerável do mundo a um tempo de fome, de desemprego, de miséria, de profunda injustiça social. Que, normal e historicamente, tem acabado em conflitos que causam milhões de mortos e a destruição das bases do quase já cadavérico Estado social. Os países em vias de desenvolvimento, de alguma forma, com os imperialismos a tentar desestabilizar um pouco por toda a parte, vêem interrompido o alicerçar das bases da sua autonomia, vão-se apavorando com a consolidação de novos colonialismos e vendo apagar uma luz de esperança para um mundo mais justo.

Que criemos condições reais no nosso país que ajudem a autonomizarmo-nos definitivamente, em vez de enriquecermos os que há séculos vivem à nossa custa.

À custa das nossas matérias-primas. À custa destas novas formas de escravidão que o capitalismo selvagem reinventa, no longo processo que há-de levar à sua própria autodestruição. Enquanto tal não acontecer, é fundamental, é urgente que saibamos construir as bases de um desenvolvimento económico que nos permita sermos donos e senhores do nosso próprio destino. Na ânsia de, num tempo não muito longínquo, podermos ter todos paz, pão, saúde e habitação. E a consciência tranquila...