Neto não suportou a humilhação. As cartas dos familiares das vítimas podiam ir para o caixote do lixo, sem ser sequer abertas, mas estar sujeito a críticas pelos seus homólogos, perdendo o estatuto de «humanista», era demais. Já anteriormente, Kurt Waldheim, secretário-geral da ONU, tinha criticado a violação dos direitos humanos, após visitar cadeias angolanas.
Que fazer? Decidiu, no regresso a Angola, extinguir a DISA, a polícia política do regime, cujos feitos tornavam os pides no período colonial vulgares meninos de coro e clamar que desconhecia os «excessos» praticados sem o seu conhecimento. Ele, a quem a DISA respondia directamente, por diploma de Novembro de 1976.
Em consequência, Neto responsabilizou a DISA pela repressão «descontrolada», dissolveu-a e nomeou uma Comissão de Inquérito (cujas conclusões já não pôde apreciar, pois morria a 10 de Setembro numa clínica de Moscovo).
Os responsáveis da sinistra polícia, Onambuwe e Ludi, não foram incriminados pelos «excessos». Do mesmo modo, os homens de segunda fila foram transferidos para outros lugares, nunca tendo prestado contas pelos seus actos, passeando-se impunemente em Luanda e outras cidades. Alguns, como o famigerado Getoeira, rumaram a Portugal, considerado país seguro, em caso de um volte-face em Angola.
Tendo dado «luz verde» aos massacres, com a célebre frase "Não vamos perder tempo com julgamentos", e respondendo a DISA perante ele (por diploma de 1976), Neto não pode deixar de ser responsabilizado pelo genocídio. Porém, temos de reconhecer que não se pode imputar tudo ao então chefe, quando houve elementos bem identificados que actuaram, em alguns casos por sua própria iniciativa, sem aguardar instruções do Presidente. Por isso, tais elementos devem ser identificados e pedir perdão às vítimas e aos seus familiares, pois a culpa não pode morrer solteira.
Quando o MPLA, pela voz autorizada do seu novo líder e Presidente da República, João Lourenço, reconheceu, no ano passado, o "cortejo de violações dos direitos humanos em Angola", os homens da DISA tremeram. Iniciado o processo de reconciliação, organizaram-se e pediram uma reunião com o ministro da Justiça, de modo a garantirem a impunidade consagrada em sucessivas amnistias.
Foram tranquilizados e, ironicamente, obtiveram um estatuto peculiar: o de vítimas. Mais tarde, face à indignação, acrescentou-se o adjectivo "passivas", para as diferenciar das "activas", como se fosse possível colocar no mesmo saco os torcionários e as verdadeiras vítimas.
Imagine-se o que seria equiparar São José Lopes, o chefe da PIDE em Angola, e as suas eficientes brigadas aos nacionalistas angolanos que foram aprisionados e torturados no período colonial. Alguém admite tal aberração?
Mas o escândalo ainda é maior; como se não chegasse, um dos torcionários integra a comissão, em representação do Ministério da Defesa. Quem é ele? Chama-se Tino Pelinganga, mais conhecido por «Capitão Tino», hoje general.
Eis o seu perfil, descrito pelo Eng.º Américo Botelho, no livro "Holocausto em Angola":
"Capitão Tino: indeléveis eram as memórias que o viam em plena acção nos pelotões de fuzilamento: as perguntas carregadas de veneno, a morte aos bochechos, exibida sem pudor; os corpos regados com gasolina na expectativa de que o fogo os desfigurasse e consumisse. Quando comandava os pelotões de execução de limpeza que se seguiu ao 27 de Maio, tomava uma vítima como exemplo, disparava sobre ela e logo lhe lançava fogo. Era o prenúncio do que aconteceria aos outros".
Descritas as proezas, importa dizer que este torcionário não se envergonha do que fez. Numa das últimas reuniões da CIVICOP, declarou, alto e bom som, que "os mortos foram bem mortos", gelando o sangue de alguns dos presentes, incrédulos perante tamanha desfaçatez e ausência de arrependimento.
Como é possível que os torcionários, os carrascos do povo, a quem Neto inclusivamente acusou de terem manchado de sangue as suas próprias mãos, se assumam como vítimas e façam parte da CIVICOP?
Este exemplo é sintomático da necessidade de alterar não apenas a composição da comissão, dela retirando todos os que se identificam com a repressão, mas, sobretudo, reformular as suas funções, que devem incluir a identificação dos responsáveis pelos atentados aos direitos humanos, a localização dos restos mortais das vítimas e sua devolução às famílias e, também, a busca da Verdade História.
Por mera coincidência, no momento em que estão a ser escritas estas linhas, recebi um artigo do «Le Monde», intitulado «Mais de 1 000 pessoas suspeitas de terem participado no genocídio do Rwanda continuam a ser procuradas». Em Angola, ninguém exigiu a "perseguição" aos responsáveis pelo genocídio do 27 de Maio. Apenas se reclama a sua identificação, na perspetiva de se saber a quem se perdoa, no pressuposto óbvio de que o pedido de perdão apenas será aceite se for efectivamente genuíno e não simulado.
É pedir muito?
Tendo morrido sem ter resolvido este dossier, que o amargurou no último ano da sua vida, Neto transmitiu esta pesada herança a José Eduardo dos Santos, que pura e simplesmente a ignorou, preocupado que estava na "acumulação primitiva do capital" por si e pela sua dileta filha, a princesa. João Lourenço teve o mérito de iniciar um processo, que não poderá ficar na penumbra. Não pomos em causa a sua boa vontade, mas há forças poderosas que procuram limitar a sua acção. Poderá assumir a grandeza de Nelson Mandela se conseguir libertar-se dos espartilhos que ainda o limitam, diferenciando-se dos seus antecessores.
A CIA e o imperialismo não foram alheios ao 27 de Maio, que aniquilou o sector mais avançado do MPLA, abrindo o caminho ao retrocesso e à perda de identidade.
Varela Gomes, valoroso combatente antifascista que dirigiu a revolta de Beja em 1964, conta no seu livro «Revolução na África Austral», que se encontrou com Iko Carreira, logo a seguir ao 27 de Maio, a fim de interceder pela libertação do capitão de Abril, Costa Martins, cuja vida estava em perigo:
"Acusei-os de estarem a ser manipulados pelo imperialismo e que a morte dos sete dirigentes mais parecia obra da CIA. Encaixou tudo, sem tugir nem mugir".
Hoje, não há quem possa «tugir ou mugir» perante as denúncias da repressão e os apelos a uma verdadeira reconciliação. Perdão, ainda há um vilão que vocifera, enroscado no seu assanhamento e a lançar ao vento tantas sandices. Porém, nem para bobo da Corte serve, tamanho o seu nanismo mental.
*Advogado e Autor