O embaixador e antigo ministro dos Negócios Estrangeiros português, António Martins da Cruz (na foto), que foi noticiado como tendo sido contratado como consultor pelo Governo angolano e que tem feito várias deslocações ao país nos últimos anos, disse, a propósito das declarações de João Lourenço, que uma das consequências da posição angolana sobre o processo que envolve Manuel Vicente é a "suspensão a sua presença na CPLP".

João Lourenço, questionado na conferência de imprensa/entrevista alargada de ontem deixou um claro aviso a Portugal de que as relações bilaterais podem ser seriamente afectadas, exigindo que o processo de Vicente seja transferido para os tribunais angolanos, como o prevê o acordo existente no âmbito da CPLP (Comunidade de Países de Língua Portuguesa).

Mas quais as respostas que Angola vai dar, o Chefe de Estado não disse, sublinhando apenas que serão conhecidas no tempo oportuno.

Mas o que Martins da Cruz, que tem relações de proximidade com o Governo angolano, sabe, como afirmou ao DN, é que as declarações do Chefe de Estado angolano sobre o assunto são "um dado novo em termos de política externa" de Luanda e que essas mesmas palavras marcam um ponto a partir do qual "não há recuo possível" neste processo que resulta da acusação e do julgamento que deverá começar ainda este mês onde Manuel Vicente é suspeito de corrupção de um procurador, entre outros crimes.

O Chefe de Estado, recorde-se, disse que Portugal não foi "lamentavelmente" de encontro ao pedido de Angola dizendo que "não confiava na Justiça angolana", acrescentando que isso foi "uma ofensa para Angola", apesar de não estar em causa o pedido de absolvição ou de arquivamento do processo mas tão só a transferência deste para decorrer nos tribunais angolanos.

"Nós não somos juízes e não temos competência para dizer se o engenheiro Manuel Vicente cometeu ou não cometeu o crime de que é acusado", sublinhou ainda João Lourenço.

Esta declaração em particular do Presidente angolano serviu a outro embaixador português, Seixas da Costa, ainda citado pelo DN, para afirmar que são "um significativo passo em frente" da parte angolana, que nunca tinha admitido "a possibilidade teórica da culpabilidade", e isso "altera, muito substancialmente, aquilo que, durante muito tempo, parecia ser a perspectiva de Angola, rejeitar objectivamente qualquer culpabilidade" do ex-vice-Presidente Manuel Vicente.

Também o especialista em questões africanas Fernando Jorge Cardoso se referiu a este assunto acrescentando que João Lourenço, com as suas declarações, colocou o assunto "onde deve ser colocado, em questões de justiça".

"O que Angola faz questão é que, se Manuel Vicente for constituído arguido e julgado, parte do julgamento seja em Angola. E isso vai seguir os trâmites normais e deve ser algo a que se deve chegar a acordo, porque é uma coisa normal entre países que têm acordos de justiça", realçou, em declarações ao diário português.

O acordo referido por Angola no âmbito da CPLP, denominado Convenção de Auxílio Judiciário em Matéria Penal, prevê "a comunicação de informações, de actos processuais e de outros actos públicos, quando se afigurarem necessários à realização das finalidades do processo...", embora contenha a possibilidade de o Estado requerido poder recusar se, por exemplo, "a prestação do auxílio solicitado prejudica um procedimento penal pendente no seu território (...)".

E diz ainda: "Mediante pedido, cada um dos Estados Contratantes, através das autoridades judiciárias competentes e em conformidade com a respectiva lei, instaurará ou continuará procedimento penal contra uma pessoa que se encontre no seu território e que tenha cometido uma infracção no território do outro Estado"

Neste momento já estão marcadas mais de 50 sessões de julgamento e, de acordo com a lei portuguesa, se Manuel Vicente não comparecer a julgamento, será dado como contumaz e passa a decorrer um outro processo.

O julgamento deve mesmo começar a 22 deste mês, até porque a imprensa portuguesa está hoje a revelar que os juizes que julgar o caso não aceitam o envio do processo para Angola, tal como o Ministério Público português, embora não esteja garantido que não o possam fazer no decurso do processo.

Reacção do Governo português às palavras do PR angolano

Entretanto, numa primeira reacção às declarações de João Lourenço, à rádio portuguesa TSF, a ministra da Justiça portuguesa garantiu que o caso que envolve Manuel Vicente só é analisado pelo Governo de Lisboa na sua dimensão político-diplomática.

Francisca Van-Dúnen avançou, como seria de esperar, que o Governo português tem acompanhado o caso que envolve o ex-vice-Presidente Manuel Vicente mas fez questão de frisar que se trata de um processo judicial e "é no espaço judicial que deve ser tratado".

A governante portuguesa admitiu também que "aquilo que disse o senhor Presidente da República de Angola, no que diz respeito à influência que este processo tem nas relações com Portugal, não é surpresa para o governo português".

"Acompanhamos este dossier e temos a percepção da avaliação que as autoridades angolanas fazem do dossier", disse.

Sendo óbvio para o Governo português que esta situação só pode ser resolvida no âmbito judicial, e com Angola a deixar bem claro que tudo será diferente no relacionamento bilateral, em consequência do desfecho que este problema vier a ter, há já quem admita que o tribunal português que estiver a julgar o caso pode, argumentando com os acordos internacionais sobre a matéria existentes, nomeadamente no contexto da CPLP, justificar a transferência do processo para Angola.

Uma eventual solução "confortável"

Esta eventual solução deixaria confortável o Governo português porque a decisão teria saído do poder judicial, sem a sua interferência, o poder judicial tinha tomado uma decisão em conformidade com um acordo do Estado português e Angola veria satisfeita a sua única exigência: ver o processo a correr nos tribunais do país.