Os apelos de António Guterres e dos líderes das organizações humanitárias internacionais vão directamente para o saco roto das tragédias globais para as quais o mundo não tem tempo para se preocupar, mas devia.
Porque o Sudão é estrategicamente uma "mina terrestre" que pode desestabilizar todo o continente e a extraordinariamente complexa região da Península Arábica, mesmo do outro lado do Mar Vermelho, que dá acesso ao estratégico Canal do Suez..
E, demonstrando a sua relevância, o Presidente em exercício da União Africana, e de Angola, João Lourenço, na sua intervenção na cerimónia de entrega das pastas à nova liderança da organização pan-africana, em Março, chamou a atenção para a crise dramática que aquele país vive.
E não foi por acaso que Lourenço falou do Sudão e da República Democrática do Congo (RDC) nesse discurso, foi porq ue é nestes dois países que actualmente decorrem as mais dramáticas crises humanitárias em todo o mundo, ambas relacionadas com interesses geopolíticos e económicos de potências económicas planetárias.
Como é bem conhecido em Angola, na RDC é a batalha pelo acesso às riquezas do subsolo do leste congolês (coltão, lítio, cobalto, terras raras...) que os rebeldes do M23, enquanto braço armado do Ruanda (ver links em baixo), travam com as forças leais a Kinshasa.
Essa batalha pelas riquezas estratégicas do Congo, fundamentais para as indústrias 2.0 das grandes potências económicas mundiais, desde logo China, EUA e europeus, já provocou, em quase três décadas, mais de 6 milhões de deslocados internos e centenas de milhares nos países vizinhos, milhares de mortos e de feridos...
Todos os anos morrem milhares de pessoas no fogo cruzado das guerrilhas com as forças leais a Kinshasa e fruto das desoladoras condições de vida dos milhões de deslocados que fogem das balas para cair nas valas comuns da fome, doença e indiferença global.
No Sudão, desde que os dois homens fortes do país, o general Mohamed Dagalo (Hemedti), que lidera as poderosas Forças de Reacção Rápida (RSF, na sigla em inglês), e o actual Presidente do Conselho de Transição, general Abdel Fattah al-Burhan, se desentenderam, são as populações civis que mais sofrem...
São já milhões de deslocado, tanto interna como externos, especialmente no Chade, que marcam aquela que a ONU e várias ONG's apontam agora como a maior tragédia humanitária planetária, e que é resultado dos dois anos de guerra civil que agora passam...
O que ressalta deste conflito, além da inexplicável indiferença global, o que pode ser evidenciado com a garantia, como vários líderes de organizações humanitárias têm dito, de que se o que ali se passa fosse noutras geografias, os media internacionais e as organizações globais, desde logo a ONU, o G7 ou os países individualmente, e não apenas a União Africana, estariam a olhar para a situação com atenção.
Embora o jogo de xadrez de interesses no Sudão seja dos mais intricados em todo o mundo, bastando para isso ver que a Rússia, que esteve com as RSF através do seu estratégico antigo Grupo Wagner, tem bilateralmente relações próximas com Cartum, com quem negoceia a criação de uma base militar em Port Sudan, no Mar Vermelho.
Ao mesmo tempo, existem notícias insistentes de que a Ucrânia tem mantido um apoio regular ao Presidente al-Burhan, enviando mesmo forças especiais para combates nalgumas situações, enquanto as forças de Hemedti contam com a ajuda inequívoca dos Emiratos Árabes Unidos e da Líbia.
Enquanto isso, os EUA, tal como a Rússia, tem apostado numa estratégia de equidistância, assumindo mesmo o estatuto de mediador em meados de 2024, sendo que o líder das RSF, Hemedti, tenha então demonstrado estar mais à-vontade com Washington.
A relevância estratégica do Sudão é decorrente da sua localização geográfica, abrangendo todo o vasto nordeste africano, com vizinhos como o Egipto, o Chade, a Etiópia e, a leste o Mar Vermelho, além da RCA, onde toca claramente na estratégica para Angola região dos Grandes Lagos, e do Sudão do Sul.
Para procurar novas formas de desatar o nó da paz no Sudão, depois de as forças leais a al-Burhan terem, curiosamente, expulsado as RSF dos pontos estratégicos que ocupavam em Cartum (ver links em baixo), como o aeroporto da cidade ou o Palácio Presidencial, o Governo britânico marcou para Londres um encontro, esta terça-feira, 15, com duas dezenas de países para analisar a realidade actual sudanesa e tentar relançar as negociações de paz.
Isto, quando, segundo os media internacionais, as RSF voltaram a massacrar centenas de pessoas em campos de refugiados no Darfur, região que ao longo de décadas tem sido massacrada pelas forças de Cartum, especialmente antes da queda do Presidente Omar al-Bashir, em 2019, cujo golpe militar abriu as portas para a crise gigantesca que o país vive actualmente.
Citada pelo britânico The Guardian, Elise Nalbandian, responsável regional pela organização de defesa dos Direitos Humanos internacional, Oxfam, afirmou categoricamente que a situação no Sudão é hoje "muito mais grave que no passado", com 13 milhões de deslocados, em 51 milhões de habitantes, milhares de mortos e centenas de milhares à beira de sucumbir à fome.
E o chefe da delegação regional da Cruz Vermelha, Daniel O`Malley, sublinha a generalizada prática de crimes graves contra a lei humanitária internacional, num cenário em que aponta para uma escalada e não para a diluição da gravidade.
Em questão está claramente a luta elo poder entre os dois homens fortes do país, o general Mohamed Dagalo (Hemedti), que lidera as poderosas Forças de Reacção Rápida (RSF, na sigla em inglês), e o actual Presidente do Conselho de Transição, general Abdel Fattah al-Burhan.
Mas o que está, aparentemente, fora dos radares dos media internacionais é quem é que, por detrás destes dois generais, cabos de guerra impiedosos, alimenta e promove com mais empenho esta guerra civil.
É que, de uma eventual vitória, de Hemdeti ou al-Burhan, vai depender quais as potências globais e regionais ficam com acesso especial aos gigantescos recursos minerais do país, no que se assemelha muito ao que se passa no leste da RDC, e aos benefícios que resultam da sua extraordinária localização geográfica no continente africano.