O intervalo nas hostilidades deveria ter começado na sexta-feira (18) de Páscoa e terminado no fim do Domingo (20), mas rapidamente se percebeu que nem as armas se calaram nem Kiev e Moscovo deixaram de fazer barulho acusando-se mutuamente de desrespeito pelo cessar-fogo pascal.
O primeiro a disparar acusações de desrespeito pelo intervalo na guerra, que fora anunciado unilateralmente por Vladimir Putin, foi Zelensky, contabilizando mesmo centenas de violações logo nas primeiras horas, ao que o Kremlin ripostou com críticas sulfurosas a Kiev.
Maria Zakharova, porta-voz do Ministério dos Negócios Estrangeiros, assim que os Estados Unidos vieram a público, aproveitando o momento, dizendo que gostariam de ver estas curtas tréguas prolongadas "além de segunda-feira", hoje, 21 de Abril, para dizer que Kiev falhou.
"Bem, o regime de Kiev falhou nas tréguas da Páscoa", acusou Zakharova, sublinhando, num recado a Washington para queimar Volodymyr Zelensky, que violou o cessar-fogo temporário com recurso a lança-roquetes norte-americanos HIMARS.
O inesperado cessar-fogo unilateral anunciado pelo Kremlin não foi mais que uma reacção estratégica de Putin à ameaça dos norte-americanos de abandonarem a mediação entre os regimes russo e ucraniano se não virem sinais de vontade genuína de parar o conflito.
E o gesto técnico do Presidente Putin não podia ser recusado por Kiev, porque isso seria dar um sinal de que acabar com esta guerra não é a prioridade maior dos ucranianos, mas, no efeito que teve no campo de batalha, é já claro que ambos desrespeitaram as tréguas parciais.
Ao anunciar as tréguas de pouco mais de 30 horas, Vladimir Putin, na sexta-feira, avisou que as forças russas iriam ripostar automaticamente a qualquer ataque ucraniano após a entrada em vigor, o que foi logo após as palavras do Presidente russo.
Com a Páscoa Ortodoxa, este ano, devido às singularidades do calendário religioso, a coincidir com a Páscoa católica, que na Ucrânia passou a ser festejada sob o azimute ocidental há um ano, para se afastar da tradição russa, estas tréguas tinham tudo para serem bem-sucedidas.
Não foram e deram mesmo lugar a outra "guerra"... de palavras, com ucranianos e russos a acusarem-se mutuamente sobre quem primeiro violou estas tréguas pascais, especialmente na tentativa de convencer os norte-americanos de que o mau é o "outro".
Os analistas apontam mesmo esta jogada de xadrez diplomático de Putin como um aproveitamento da "bolina" permitida pela ameaça da Casa Branca em abandonar o processo negocial sobre o conflito no leste europeu se não forem dados sinais claros de rumo à paz.
Mas os mesmos analistas sublinham que tanto Putin como Zelensky têm pouco interesse em terminar agora o conflito.
Porque em Moscovo se pensa que calar agora as armas significaria que parte das regiões anexadas oficialmente, mas ainda não conquistadas militarmente, estariam perdidas no embrulho burocrático das futuras negociações.
E em Kiev Zelensky sabe que perde o poder assim que a guerra acabar e forem realizadas as eleições que têm sido adiadas sucessivamente desde Maio de 2024, através da extensão da Lei Marcial, devido ao conflito, e quando todas as sondagens indicam que assim será.
E essa é a razão pela qual o Presidente ucraniano se apressou a apontar o cessar-fogo pascal de Putin como "fake" porque as forças russas, garantiu Zelensky, nunca pararam de atacar as posições ucranianas com artilharia e drones.
E atirou para a pantalha mediática mesmo números concretos de artilharia pesada: "Os russos violaram as suas tréguas por 2 mil vezes em em seis horas tendo realizado 67 assaltos de infantaria a posições de defesa" de Kiev.
Isto, apesar de a francesa AFP ter citado soldados ucranianos a relatar uma expressiva redução da actividade russa quer nos disparos de artilharia quer nos ataques com drones nas regiões de Kharkiv e Kherson, duas das mais quentes áreas dos 1200 kms de linha da frente.
Apesar deste rolo compresso de acusações de um e do outro lado, em Kiev, à jogada de mestre de xadrez de Putin, Zelensky não se ficou por menos e procura agora encostar às cordas o chefe do Kremlin propondo-lhe prolongar as suas próprias tréguas por mais 30 dias.
E Zelensky nem sequer quer umas tréguas totais, foi específico ao nomear, segundo The Guardian, que se trata de parar os ataques sobre infra-estruturas civis ucranianas por mais um mês.
E para quem este "teatro" foi desenhado, o Presidente norte-americano Donald Trump, a oportunidade também não foi ignorada, porque veio usar esta disponibilidade verbal das partes em conflito para defender que um cessar-fogo mais arrojado é possível em dias.
"Espero que agora a Rússia e a Ucrânia alcancem um entendimento mínimo para chegarem a um acordo ainda esta semana", escreveu Trump nas redes sociais, aproveitando para aliciar Moscovo e Kiev com a garantia de que "se o fizerem, farão grandes negócios com os EUA".
No seu peculiar estilo, o Presidente norte-americano garantiu a Vladimir Putin e Volodymyr Zelensky que ambos "farão grandes fortunas" com negócios envolvendo os Estados Unidos, numa declaração que, por não ter detalhes sobre o timing do acordo, aparenta depositar esperança na "cenoura" mostrada aos dois Presidentes que serão os "grandes negócios" com os quais "farão fortunas com os EUA".
O "teatro" começou em Paris
Este cenário emerge de um momento, no final da passada semana, como o Novo Jornal noticiava então (ver links em baixo), quando, horas antes do início de uma reunião extraordinária em Paris, França, entre delegações de alto nível dos EUA, Reino Unido e França, sobre a Ucrânia, a Casa Branca estava claramente a encostar as partes em conflito à parede, ameaçando Moscovo e Kiev de que se não derem sinais claros de entendimento "em dias" ficariam sem a mediação norte-americana.
Os Estados Unidos vão abandonar as negociações de paz entre ucranianos e russos se não perceberem no imediato que ucranianos e russos estão seriamente empenhados em encontrar os caminhos da paz, avisou o secretário de Estado dos EUA, Marco Rubio, na capital francesa.
Em Paris, Rubio, e ainda o enviado especial de Trump para o conflito no leste europeu, Steve Witkoff, mantiveram conversações com a Presidência francesa, e com a delegação britânica encabeçada pelo chefe da diplomacia de Londres, David Lammy, onde deixaram claro, como nunca o tinham feito, de que a paciência da Casa Branca chegou ao fim.
O chefe da diplomacia norte-americana foi claro, deixando a posição de Washington preto no branco: "se existirem sinais evidentes de que um acordo de paz é possível, tido faremos para o conseguir, se assim não for, então o Presidente Donald Trump vai abandonar este processo".
E foi ainda mais longe ao garantir, de acordo com a Reuters ou The Guardian, após os encontros de Paris, que "não se trata de esperar meses ou semanas", estando Rubio a falar de "dias para verificar se esse acordo é possível" porque "se assim não for, os EUA têm outras prioridades para se focarem" e o conflito entre russos e ucranianos sairá da agenda norte-americana.
Ora, este cenário, que não é possível para já perceber as eventuais consequências, a não ser que seriam dramáticas, não terá, seguramente, apanhado o Presidente russo, Vladimir Putin, ou sequer o ucraniano Volodymyr Zelensky, porque ambos têm disseminado posições de clara inflexibilidade mesmo com a redução do fluxo de amas dos EUA, no caso da Ucrânia, e as férreas declarações de Donald Trump no sentido de querer resultados rapidamente.
Se os russos já foram claros de que, mesmo querendo a paz, sem as suas exigências respeitadas por Kiev e pelos seus aliados, a guerra vai continuar, com ou sem os EUA envolvidos, Zelensky tem apostado numa estratégia de avanços e recuos no que são as linhas vermelhas ucranianas nesse processo.
Até porque os aliados europeus de Kiev têm, especialmente as grandes potências militares, como a França, Reino Unido, Alemanha, especialmente agora com a saída de cena do chanceler Olaf Scholz e a chegada do mais pró-guerra Friedrich Merz, ou Polónia, reforçado a sua disponibilidade para substituir o apoio até aqui fornecido pelos americanos, de forma a dar o músculo necessário para os ucranianos continuarem a combate a presença russa no seu território.
No pior dos cenários, como apostam alguns analistas militares, a saída dos EUA, se isso resultar na retirada total do apoio a Kiev, dará lugar a uma escalada no conflito e o possível envolvimento directo de forças europeias no apoio a Kiev porque sem essa intervenção a Rússia poderá encontrar o caminho "amolecido" para chegar mesmo a Kiev.