É já no próximo mês de Fevereiro, entre 17 e 26, que as forças navais sul-africanas se vão envolver com as congéneres chinesa e russa nos exercícios "Operação Mosi", ao largo da sua costa sull, o que no ocidente está a ser visto como um arriscado passo de Pretória na direcção de Pequim e Moscovo, os "inimigos" já declarados dos EUA, e do chamado ocidente alargado, que se estende à Europa ocidental, Austrália, Japão e Coreia do Sul... em vários documentos estratégicos.
Embora se trate apenas de exercícios militares, o significado destes vai além do envolvimento da sua Armada, porque surgem depois de o Presidente sul-africano, Cyril Ramaphosa, logo após o despoletar da guerra na Ucrânia, e quando as diversas geografias começavam a escolher lados ou a posicionar-se de forma equidistante, ter afirmado que a África do Sul não podia ignorar a solidariedade que recebeu da então União Soviética, e depois da Rússia, no desmoronar do apartheid.
Mas também do facto de este não ser o primeiro "desafio" aos amigos" ocidentais de Pretória, porque, ainda na semana passada, como o Novo Jornal noticiava aqui, os sul-africanos se envolveram numa troca de "mimos" com os Estados Unidos por causa de um navio de carga russo, o Lady R., que atracou num porto do país e que, segundo a intelligentsia norte-americana estaria a carregar armamento, o que está sob sanções ocidentais.
O Governo de Ramaphosa não esteve com meias conversas e fez saber à embaixada americana que se tratava de um assunto interno, não se desviando do que estava a acontecer, ao que tudo indica, autorizando a atracagem e proceder ao descarregamento de material militar russo anteriormente encomendado pela África do Sul, garantindo a segurança da embarcação com uma unidade militar no porto onde estava acostado o Lady R.
E estes episódios têm como pano de fundo a clara indisponibilidade de Pretória para condenar a invasão russa à Ucrânia, votando contra a vontade dos EUA nas resoluções levadas à Assembleia-Geral das Nações Unidas condenando Moscovo e ainda mantendo substantivos gestos de amizade e solidariedade para com a Federação Russa através de declarações do Presidente Ramaphosa ou do seu Ministério dos Negócios Estrangeiros, com a mudança preconizada por Pequim e Moscovo da actual ordem mundial baseada em regras para uma outra suportada por laços de cooperação entre iguais.
A China e a Rússia são, ainda, dois dos maiores parceiros comerciais da África do Sul, e a China, bem como a Rússia, vêm amiúde, publicamente, sublinhar os laços históricos e sólidos que os unem, sendo que estes exercícios, como a Bloomberg sublinha, vão aprofundar ainda mais esses laços, depois da posição desafiante mais recente de abrir os portos do país a embarcações sancionadas pelo ocidente.
Nos corredores da política sul-africana começa a surgir o receio de que esta aproximação de Pretória a Moscovo e Pequim - apesar de os exercícios navais gora anunciadas terem tido uma versão em 2019 - sem problemas de maior, possa comprometer os negócios comos parceiros ocidentais, como sublinhou um dos dirigentes da oposição, Kobus Marais, da Aliança Democrática, nomeadamente os EUA e o Reino Unido.
No entanto, enquanto membro dos BRICS, grupo de países composto por Brasil, Rússia, Índia, China e África do Sul, ao qual deverão entrar em breve outras potências como a Arábia Saudita e Argentina, entre outros, os sul-africanos já têm relações privilegiadas com os dois países com quem vão partilhar os seus mares austrais em Fevereiro.
Mas o risco existe, porque, como lembra a Bloomberg, os maiores parceiros comerciais, além da China, que ocupa, de longe, o topo da lista, com quase 12% do total, são os EUA e a Alemanha, sendo que a Rússia fica bastante abaixo, embora mantenha uma posição de elevo em áreas estratégicas como os cereais e o armamento.
Este episódio não emerge a solo no actual contexto mundial onde impera a geopolítica
Para África, rápido e em força...
... parece ser o lema das grandes economias ocidentais, desde logo os Estados Unidos da América, que, com a chegada de Joe Biden à Casa Branca, em 2020, procuraram reverter a política de abandono da influência em África que foi confirmada em absoluto por Donald Trump, mas começada com Barack Obama.
E se Joe Biden teclou "Ctrl Alt Del" na política de Washington para o continente, com a Cimeira EUA-África em Dezembro de 2022, à qual colou a defesa de uma presença continental no grupo dos membros permanentes do Conselho de Segurança das Nações Unidas, como defende há décadas a União Africana, e prometendo uma nova atenção aos seus problemas, a França, que vê o seu rasto africano a desvanecer dia após dia com o "assalto" russo e chinês à sua "FranceAfrique", especialmente na África Ocidental, também embarcou na missão de recuperar o tempo perdido.
Todavia, esta procura dos norte-americanos por um "regresso" triunfal a África, tende a esbarrar na solidez das "fortificações" de Pequim e Moscovo, desde logo porque se Washington não se consegue livrar da "obrigação" de impor os seus valores democráticos e no âmbito dos Direitos Humanos, como Joe Biden deixou claro aquando da recente Cimeira em Washington, Pequim e Moscovo apostam na não-interferência e na cooperação linear, sem obstáculos morais nessa caminhada, o que é lido no continente, pelo menos em grande parte dos países, onde abundam as autocracias e os "poderes fortes", como a posição correcta, porque não se apresentam como "lanças em África" com as quais procuram impor os valores ocidentais.
Joe Biden usou uma expressão curiosa nessa Cimeira de Washington, afirmando que os Estados Unidos estão "all in" em África, que mais que uma tradução literal, deve ser lida como um avanço sobre o continente sem reservas nem limitações de meios, pondo na mira a China e a Rússia, embora, depois, tenha voltado a colocar como compromisso não abdicar da defesa dos tais valores ocidentais ligados à democracia liberal e aos valores ocidentais no âmbito dos Direitos Humanos, que nas capitais do continente, comummente, é lido como... ingerência na política doméstica.
Ainda assim, o Presidente dos EUA, embora ainda sem data definitiva, está a preparar com afinco a sua deslocação a África, prometida aos 50 lideres africanos que com ele se sentaram à mesa na capital norte-americana, sendo quase certo que Luanda será uma das capitais no "tour" continental de Biden.
Isto, porque a presença do "líder" do ocidente na capital angolana, quando ocorrer dessa prometida visita oficial a África, é, em boa medida, uma devolução da, embora ainda por confirmar em pleno, reviravolta de Luanda na sua política externa.
Mudança essa que contempla uma clara aproximação aos EUA em, provavelmente, detrimento de Moscovo e, eventualmente, de Pequim, como ficou claro na forma como votou uma proposta na AG da ONU condenando a Rússia, ou ainda como os Secretários de Estado, Anthony Blinken, e da Defesa, Lloyd Austin, após um encontro com João Lourenço em Washington, elogiaram a abertura de Angola para "fazer compras" nos EUA, referindo-se, quase certo, à área militar, onde a Rússia é, desde a "Guerra Fria" até agora, fornecedor quase exclusivo.
Mas também Paris e Berlim estão alinhados neste esforço de recuperar tempo perdido, com as suas ministras dos Negócios Estrangeiros, Chaterine Colonna, e Annalena Baerbock, a caminho da Etiópia, onde, curiosamente, o recém-empossado ministro dos Negócios Estrangeiros chinês, Qin Gang, iniciou, simbolicamente, a sua primeira visita ao exterior, seguindo depois para o Gabão, Angola, Benim e Egipto.
As duas chefes da diplomacia dos dois mais importantes países europeus agendaram e anunciaram esta visita conjunta, para 12 e 13 deste mês, à Etiópia já depois de se saber da chegada de Qin Gang a Adis Abeb, cidade onde está sedeada a União Africana (UA), justificando-a com o reforço da aposta na paz naquele pais, em guerra desde 2021, embora em fase de transição para um entendimento entre os rebeldes de Tigray e o Governo etíope.
Mas é impossível afastar do "ecrã" a questão do "grand jeu" que decorre em África entre o ocidente e as potências russa e chinesa, porque a Etiópia tem sido, claramente, no continente oriental, a peça-chave dos "jogadores", não porque ali se encontra sedeada a UA, mas também porque se trata do segundo país mais populoso de África, a seguir à Nigéria, com mais de 115 milhões de habitantes.
Contra-ataque americano não apanhou Moscovo e Pequim distraídos
O encontro alargado de Joe Biden com os líderes africanos em Dezembro de 2022, são poucos os que não estiveram presentes nesta reunião de três dias - dos 54 países do continente, foram convidados 49 -, era e é claro, partir em busca do tempo perdido e mitigar os efeitos da crescente influência de Pequim e Moscovo em África.
Isto, porque, como a História não deixou de cravar a ferro em brasa no continente, depois de Obama chegou à Casa Branca o menos inclinado para África de décadas de lideranças norte-americanas, Donald Trump, sendo que foi no seu consulado que a Rússia mais ganhou tracção no grand jeu africano, facto que ainda hoje se prolonga e adensa, como é visível na forma como em alguns países do Sahel, americanos e franceses são fortemente apupados e os russos elogiados; o mesmo tipo de elogio dedicado à China, que se foca na cooperação económica e afasta questões políticas e sociais da mesa das negociações.
Quando Biden mandou divulgar que iria realizar esta Cimeira, quase um ano antes, isso não deixou de aparecer nos radares de Moscovo e Pequim, com o Kremlin a enviar vários dos seus diplomatas de topo para sucessivos périplos africanos, sendo que um destes foi mesmo liderado pelo ministro dos Negócios Estrangeiros, Sergei Lavrov, tendo a diplomacia chinesa optado por um empenhado mas menos exposto esforço de contenção de danos através dos seus canais diplomáticos bem lubrificados em duas décadas de proximidade única e multibilionária na forma de infindáveis linhas de crédito pagas com recursos naturais que permitiram, em parte, o agigantamento industrial do "gigante" asiático.
Uma das questões mais rugosas para ultrapassar por parte dos EUA são os laços históricos herdados pelo Moscovo de hoje do Moscovo da então União Soviética, que é visível, além da gratidão que alguns líderes africanos não escondem, como o Presidente sul-africano, Cyril Ramaphosa, pelo apoio dos russos nas lutas de libertação, mas também os fortíssimos laços na cooperação militar que se traduzem na continuada condição de maior vendedor de equipamento de guerra ao continente, que não pode ser obliterado de um dia para o outro porque há décadas de experiência e formação obtida e mantida com as armas "soviéticas" e trocá-las por norte-americanas exigiria anos a fio de formação e adequação, o que em nada agrada às chefias mais veteranas.
Há, no entanto, sinais de que alguns Estados africanos podem estar a repensar a sua posição, especialmente bem-vinda para Washington agora que está em curso uma das mais catastróficas guerras na Europa em décadas e que opõe directamente a Rússia e a Ucrânia, mas que, na verdade, é um confronto militar entre equipamento ocidental (NATO/EUA) e a capacidade bélica da Federação Russa, como se viu quando, na última das resoluções aprovadas na ONU condenando Moscovo, alguns países, entre estes Angola, alteraram o seu voto, adequando-o aos interesses dos Estados Unidos - autor da resolução -, embora esses votos pouco ou nada tenham alterado na correlação de forças na Assembleia-Geral das Nações Unidas, excepto no campo simbólico, sendo aí Luanda o caso mais interessante pelo vasto passado que une Angola e a Rússia.
Facto sem réplica é que o continente africano é hoje o mapa de algumas das mais exigentes disputas por influência geoestratégica em todo o mundo, não só porque é no continente africano que estão localizadas algumas das quase exclusivas reservas de minérios fundamentais e insubstituíveis - como o conjunto de minerais denominados terras raras, ou como o coltão, com 80% dos stocks conhecidos na RDC, ou o cobalto -, nas novas tecnologias e indústrias de ponta, na transição energética que pode salvar o mundo das alterações climáticas ou os velhinhos mas persistentes na sua importância planetária: ouro, diamantes, gás, petróleo, mercúrio, fosfatos, tungsténio...
E se, como os ministros chinês (agora ex-ministro) e russo dos Negócios Estrangeiros, Wang Yi e Sergei Lavrov, deixaram claro num encontro no início de 2022, pouco depois do arranque da guerra na Ucrânia, o que está em causa é a criação de uma nova ordem mundial, com o ocidente de um lado e um eixo Pequim-Moscovo fortificado com ligações sólidas aos BRICS, e do outro o chamado ocidente alargado - EUA, União Europeia, Austrália, Japão...-, então, o papel de África é muito mais que o de fornecedor de matérias-primas, pode mesmo ser o fiel da balança, o que não deixa de ser irónico, como alguns analistas já admitem, porque basta os africanos saberem negociar e trabalhar os corredores, para serem os grandes vencedores desta disputa global de titãs...
E Angola pode e deve estar na linha da frente deste novo capítulo na História do continente, até porque, como disse, citado pelo AfricaNews, Ervin Massinga, do Gabinete dos Assuntos Africanos no Departamento de Estado, em Washington sabe-se que "muito está a acontecer em Angola, há muito potencial no ar" e não só nas áreas tradicionais do petróleo e dos gás, atirando a isca mais apetecida na Cidade Alta, que é a disponibilidade para atrair para Luanda investimento norte-americano, especialmente nas telecomunicações, sector dos medicamentos e na indústria...
Isto, depois de João Lourenço ter recebido em audiências, em Washington, durante a Cimeira de Dezembro, os secretários de Estado, Anthony Blinken, e da Defesa, Lloyd Austin, em que o Chefe de Estado angolano repetiu com renovado empenho a condição de abertura de Angola para o investimento estrangeiro, o que acompanha com um conjunto alargado de reformas económicas e políticas que os americanos podem comprovar ouvindo o embaixador norte-americano em Luanda, Tulinabo S. Mushingi, nascido no Congo, que não se tem poupado a esforços para elogiar a governação angolana nesse aspecto.
E depois destes encontros, Lourenço frisou isso mesmo o facto de Angola estar a dar sinais claros de que está apostada em reforçar a cooperação com os EUA, com passos responsáveis que dão corpo a um ponto de viragem na forma como Luanda olha para as suas relações externas, de forma consciente face ao histórico do relacionamento com Washington, que é de todos conhecido porque, ao longo de anos de guerra civil, ocupavam "barricadas" distintas e importantes no computo da Guerra Fria.