O recado claro e inequívoco de Vladimir Putin de que se está perante uma escalada na guerra da Ucrânia foi deixado numa declaração ao país transmitida em directo pelas televisões, já nesta manhã de quarta-feira, 21, depois de ter sido anunciada para a tarde de ontem, terça-feira, e adiada sem qualquer explicação, mas sem ferir as expectativas de que algo de novo se iria passar. E aconteceu.
Uma mobilização parcial que pode chegar aos 350 mil homens, todos reservistas, ou seja, que já têm experiência militar, para reforçar a linha da frente da guerra na Ucrânia, que não deixou de ser classificado ainda e sempre como uma "operação militar especial", onde Moscovo pretende voltar a uma posição ofensiva de modo a contrariar as recentes contrariedades impostas pela contra-ofensiva ucraniana que permitiu a Kiev voltar a erguer a sua bandeira em mais de 3.000 kms2 que tinham sido perdidos em mais de seis meses de combates, no leste do país.
Com esta iniciativa, que já está a ser equaciona há meses e, dizem analistas, esteve para ser anunciada a 09 de Maio, na comemoração do DIa da VItória, em Moscovo, o Kremlin está claramente a anunciar uma escalada na guerra, ficando apenas por saber até onde poderá querer ir Putin, visto que desde 24 de Fevereiro, excluindo a tomada de largas partes das províncias do Donbass e em Kherson e Zaporijia, o calendário tem sido marcado por contrariedades flamejantes, como a recente perda de geografia importante no Donbass e a norte, mas também a forma como foram obrigados a abandonar as imediações de Kiev logo no início de Março.
O outro dado relevante desta declaração de Putin foi sobre o recurso ao arsenal nuclear russo, o mais volumoso do mundo, contando com os recentes avanços na área da velocidade hipersónica dos seus mísseis de longo alcance, afirmando que não hesitará em fazê-lo face a uma circunstância de risco existencial para a Federação Russa, o que, não sendo uma novidade, é uma força de recolocar em cima da mesa o maior dos medos, até porque disse ainda que não vale a pena pensar-se no ocidente que se trata de mera retórica, porque não é, "isto não é bluff".
"Bluff", na terminologia do jogo de póquer, é quando um dos jogadores aposta contra os outros sem cartas de valor na mão, simulando que tem o jogo mais forte, levando os outros a desistir, deixando, assim, mais uma informação valiosa: ao invés de xadrezista, Putin é um jogador de póquer de "high stakes - valores altos", em cujas mesas se perdem ou ganham fortunas inimagináveis para os não iniciados nestes caminhos tortuosos, e já avisou que está a jogar com um par de ases (AA), a mão mais valiosa deste jogo, que são as suas mais de seis mil ogivas nucleares, o maior paiol do mundo neste tipo de munições do "juízo final".~
Apesar da densidade das ameaças e da certeza de que a Rússia vai avançar já hoje com a mobilização parcial nacional de mais de 300 mil reservistas, tudo homens e mulheres com experiência de serviço militar, e com o reforço de novos equipamentos, ainda não levados para a frente de batalha, embora não se saiba bem quais - o Sukhoi Su-57, o mais avançado avião da Força Aérea da Federação Russa, ou o T-14 Armata, o mais recente e tecnologicamente avançado blindado do país, são possibilidades -, do lado ucraniano a resposta foi irónica e de forma a negligenciar as consequências possíveis, a ponto de um dos conselheiros do Presidente Volodymyr Zelensky ter mesmo afirmado que Moscovo está apenas a "substituir tropas que morrem em solo ucraniano".
Mas dos aliados ocidentais de Kiev vieram igualmente reacções viperinas, como a do Secretário da Defesa britânico, Bem Wallace, que disse sobre esta mobilização tratar-se de uma admissão de que a invasão está a correr mal, levando isso o Presidente Putin a dar a sua palavra por não dita quanto à necessidade de mobilização extraordinária.
Também a embaixadora norte-americana em Kiev se referiu a esta declaração de Putin como uma "demonstração de fraqueza".
Bridget Brink disse que a mobilização extraordinária e o anúncio dos referendos no Donbass, que já se sabia deste segunda-feira mas que agora Putin deixou claro que apoio e que a integração de Donetsk e Lugansk na Federação vai alterar todo o quadro legal de resposta aos ataques ucranianos, são "sinais de fraqueza e do falhanço russo".
E avisou: "Os EUA jamais vão reconhecer a anexação de territórios ucranianos pela Rússia".
Menos efusivo, o Ministério dos Negócios Estrangeiros da China apelou às partes para que optem pelo diálogo e pela consulta de forma a encontrar "um caminho que permita chegar a um entendimento suficiente para todos e que permita parar o conflito".
"Estamos a combater contra o Ocidente, não contra a Ucrânia"
Vladimir Putin já o tinha dito e o seu ministro da Defesa, Sergei Shoigu, ou o ministro dos Negócios Estrangeiros, Sergei Lavrov, também, mas voltou a repetir que em Moscovo não existem dúvidas de que o conflito não tem frente a frente a Rússia e a Ucrânia, mas sim a Federação Russa e toda a capacidade militar do ocidente, que é como quem diz, da NATO.
Os reservistas, mais de 300 mil, que vão agora reforçar as linhas de combate, têm de ter forçosamente o serviço militar concluído, tendo Putin esclarecido que, ainda assim, ser-lhes-á fornecido treino militar complementar e ser-lhes-ão garantidos todos os benefícios previstos para quem está ao serviço do país na frente de batalha.
Mas o ministro da Defesa, num aparte, deixou claro que 300 mil reservistas é apenas 1% do potencial total da mobilização nacional russa, tendo ainda Shoigu feito a primeira declaração sobre as baixas do lado russo em meses, ao admitir a perda de 5.937 militares na frente de combate.
Nesta declaração, Putin acusou ainda Kiev de se ter retirado da mesa das negociações de paz em Abril, em obediência às instruções dos países ocidentais interessados em manter esta guerra, porque o seu objectivo e enfraquecer a Rússia, dividir a Rússia e levar ao colapso da Rússia, sob compromisso de criar um fornecimento contínuo de armamento e apoio financeiro ocidentais, além de linhas infindáveis de mercenários estrangeiros, a Kiev como contrapartida para que Zelensky mantivesse o conflito aceso
"Os EUA e a União Europeia visam claramente derrotar a Rússia e empurra-la para a insignificância internacional a fim de conseguirem apoderar-se dos seus recursos naturais", acusou o chefe do Kremlin.
Este cenário, deixou claro, sustenta aquilo a que ele chama de "ameaça existencial real" à Federação Russa, o que pode evoluir para um cenário onde se justifica, face à doutrina actual russa para o seu uso, o uso do arsenal nuclear.
Essa doutrina, que o porta-voz do Kremlin, Dmitri Peskov, esclareceu recentemente, assenta em quatro pilares estruturais: o avanço de forças inimigas sobre o território nacional, a detecção de uso de armas nucleares contra o país, a detecção de ataques à infra-estrutura de defesa nuclear russa ou ainda a ameaça confirmada de risco iminente de perda de soberania política por acção externa.
Alguns analistas admitem que esta doutrina, apesar de sólida, permite um relativo grau de flexibilidade interpretativa que pode levar a encontrar nas actuais condições - o apoio massivo da NATO ao esforço de guerra ucraniano - uma situação de ameaça existencial a Moscovo.
Entretanto, no Donbass
A anexação das duas repúblicas independentistas do Donbass, Donetsk e Lugansk, territórios situados na fronteira leste da Ucrânia com a Rússia está em cima da mesa pelo menso desde 2014. E, agora, numa jogada clara para apressar o processo que decorre desde 2014, o Kremlin decidiu avançar com referendos locais para oficializar a sua integração em território da Federação Russa, tal como ocorreu com a Crimeia, em 2014.
A consequência imediata da realização destes referendos, que na segunda-feira foram anunciados para terem lugar entre 23 e 27 de Setembro, é que o que hoje são territórios rebeldes para a Ucrânia, e repúblicas independentes reconhecidas pela Rússia e pelos seus mais apertados aliados, como a Síria ou a Coreia do Norte, passam a ser parte de pleno direito da Federação Russa, às quais Moscovo passará a defender como qualquer outra região do país, nomeadamente em caso de ataque externo, o que é um factor que pode elevar de forma robusta a densidade militar deste conflito.
Estes escrutínios, que devem igualmente abranger a província de Kherson - e, provavelmente, também a de Zaporijia -, mais a sul, na costa do Mar Negro, tomada pelos russos em Março/Abril, vão decorrer já depois de Moscovo ter reconhecido a sua independência a 24 de Fevereiro, o que serviu para justificar a invasão, e que, agora, com este upgrade, poderá também voltar a servir de rampa para uma escalada flamejante dos combates, a ponto de o Presidente dos EUA, Joe Biden, se ter sentido, nos últimos dias, obrigado a vir a terreiro avisar Putin para não usar armas de destruição em massa, porque isso teria uma resposta "nunca vista" da parte da NATO.
Mudança de táctica
A estratégia para esta guerra estava a ser questionada com cada vez maior insistência no seio da sociedade militar e política russas, com os media estatais a fazerem eco das dúvidas sobre as opções do Kremlin - o que quer dizer que foram autorizadas a fazê-lo com a intenção de medir e testar o pulso à sociedade civil - , fazendo ouvir as vozes que querem ver Moscovo a subir um patamar nesta ofensiva, deixando de lado as limitações inerentes à "operação militar especial" definida por Vladimir Putin, empregando apenas tropas profissionais, sem recurso a reservistas, com um claro limitado leque de alvos militares, o que poderia, por exemplo, levar a Rússia a alvejar as infra-estruturas ferroviárias e rodoviárias, tornando-as inúteis, barragens, centrais eléctricas, ou mesmo avançar para bombardeamentos aéreos estratégicos com recurso aos bombardeiros pesados supersónicos como o TU-160 (Tupolev) etc, o que ainda não se viu, exceptuando casos pontuais, como a destruição de uma barragem na semana passada para impedir as tropas inimigas de atravessar o rio.
Mas em Moscovo não se equaciona recorrer a munições nucleares, como alguns analistas ocidentais têm admito que pode suceder face a evidentes perdas na frente das forças de combate russas, como, por exemplo, as ogivas nucleares tácticas, de "pequeno" alcance, cujo efeito é sentido apenas numa área limitada, e que foram desenhadas para conter súbitos avanços do inimigo com ameaça de destruição da capacidade de combate, sendo parte dos arsenais tanto da Federação Russa como dos EUA.
Também as armas de destruição alargada como as químicas ou biológicas não estão no leque das possibilidades, sendo mesmo, tal como o nuclear, um elemento claro das linhas vermelhas traçadas pelo Presidente norte-americano, Joe Biden, que voltou, numa entrevista recente à CBS, a advertir para os riscos de resposta devastadora a Moscovo se der esse passo nesta guerra, onde Washington e os seus aliados europeus são parte directamente interessada ao fornecerem o apoio vital e ilimitado de armamento e financeiro a Kiev com o objectivo admitido, como o disseram sem titubear o Secretário de Estado Antony Blinken, e o Secretário da Defesa, Lloyd Austin, de vergar a Rússia e enfraquecê-la até se tornar irrelevante no mundo.
Alias, um sinal de que ninguém sabe ao certo o que vai suceder nos próximos dias, e quando o Inverno já bate à porta do Hemisfério Norte, com as suas temperaturas, naquela parte da Europa, a chegarem aos 30º negativos facilmente, é que as chefias militares norte-americanas ordenaram a elevação do estado de prontidão das suas forças (NATO) no leste europeu, especialmente na Polónia - o maior apoiante de uma guerra directa da Aliança Atlântica com a Federação Russa -, por temerem uma reacção elevada em escala por parte de Moscovo face às dificuldades enxovalhantes para uma superpotência militar sentidas na frente de combate.
De Moscovo não tardou a resposta. Dmitry Peskov, o porta-voz do Kremlin respondeu a Joe Biden dizendo que Moscovo nem sequer percebe as palavras do Presidente norte-americano porque a sua doutrina nuclear russa está bem clara e escrita, acessível a todos os interessados, e limita o recurso ao arsenal nuclear - o maior do mundo, diga-se - quando estiver perante uma ameaça existencial à Federação Russa, o que, concluiu, não o caso do que se passa actualmente no conflito na Ucrânia.
Mas é igualmente verdade que Vladimir Putin também traçou linhas vermelhas aos norte-americanos e aos seus aliados europeus, especialmente ao Reino Unido, quando lhes disse que tudo mudaria de perspectiva se estes fornecerem misseis de longo alcance aos ucranianos, e lembrou, o que Biden concordou, que no dia em que as tropas da NATO e da Rússia se alvejarem directamente, pouco ou nada poderá impedir uma escalada para o nuclear e o fim mais que certo da Humanidade tal como a conhecemos.
Em boa verdade, embora não seja coisa para já, essa possibilidade cresce a cada dia que passa sem que se veja um fim para este conflito, muito por causa do massivo apoio ocidental/NATO à Ucrânia como meio de derrotar os russos, como, por exemplo, também já o disse a presidente da Comissão Europeia, a alemã Ursula Leyen, tendo mesmo garantido a semana passada que a União Europeia vai aumentar e não reduzir o apoio financeiro e militar (os países individualmente) a Kiev, bem como engrossar as sanções, as mais violentas de sempre aplicadas a um país, à Rússia, mesmo que isso vá aumentar de força trágica a galopante crise económica que assola a Europa ocidental, os EUA, com efeitos devastadores em quase todo o mundo.
E com perspectivas negativas para os próximos meses, porque as sanções e as represálias de Moscovo estão a reduzir o volume de gás natural e crude exportados pela Rússia, deixando a União Europeia à beira de uma crise energética sem precedentes, que pode ter consequências económicas e financeiras impossíveis de antecipar para já.
Contexto da guerra na Ucrânia
A 24 de Fevereiro as forças russas iniciaram a invasão da Ucrânia por vários pontos, tendo o Presidente russo dito que se tratava de uma "operação militar especial", sublinhando que o objectivo não é a ocupação do país vizinho, condição que evoluiu depois para a anexação de territórios no Donbass mas também as regiões de Kherson e Zaporijia, mas sim a sua desmilitarização e desnazificação e assegurar que Kiev não insiste na adesão à NATO, o que Moscovo considera parte das suas garantias vitais de segurança nacional.
O Kremlin critica há vários anos fortemente o avanço da NATO para junto das suas fronteiras, agregando os antigos membros do Pacto de Varsóvia, organização que também colapsou com a extinção da URSS, em 1991.
Moscovo visa ainda garantir o reconhecimento de Kiev da soberania russa da Península da Crimeia, invadida e integrada na Rússia, depois de um referendo, em 2014, e ainda a independência das duas repúblicas do Donbass, a de Donetsk e de Lugansk, de maioria russófila, que o Kremlin já reconheceu em Fevereiro.
Do lado ucraniano, a visão é totalmente distinta e Putin é acusado de estar a querer reintegrar a Ucrânia na Rússia como forma de reconstruir o "império soviético", que se desmoronou em 1991, com o colapso da União Soviética.
Kiev insiste que a Ucrânia é una e indivisível e que não haverá cedências territoriais como forma de acordar a paz com Moscovo, sendo, para o Presidente Volodymyr Zelensky, essencial o continuado apoio militar da NATO para expulsar as forças invasoras.
A organização militar da Aliança Atlântica está a ser, entretanto, acusada por Moscovo de estar a desenrolar uma guerra com a Rússia por procuração passada ao Exército ucraniano, o que eleva, segundo o ministro dos Negócios Estrangeiros da Rússia, Sergei Lavrov, o risco de se avançar para a III Guerra Mundial, com um confronto directo entre a Federação Russa e a NATO, que tanto o Presidente dos EUA, Joe Biden, como o Presidente Vladimir Putin, da Rússia, já admitiram que se isso acontecer é inevitável o recurso ao devastador arsenal nuclear dos dois lados desta barricada que levaria ao colapso da humanidade tal como a conhecemos.
Esta guerra na Ucrânia contou com a condenação generalizada da comunidade internacional, tendo a União Europeia e a NATO assumido a linha da frente da contestação à "operação especial" de Putin, que se materializou através de bombardeamentos das principais cidades, por meio de ataques aéreos, lançamento de misseis de cruzeiro e artilharia pesada, e com volumosas colunas militares a cercarem os grandes centros urbanos do país, mas que agora está concentrada no leste e sudeste da Ucrânia.
Na reacção, além da resistência ucraniana, Moscovo contou com o maior pacote de sanções aplicadas a um país, que está a causar danos avultados à sua economia, sendo disso exemplo a queda da sua moeda nacional, o rublo, que chegou a ser superior a 60%, embora já tenha, entretanto, recuperado.
Estas sanções, que já levaram as grandes marcas mundiais a deixar a Rússia, como as 850 lojas da McDonalds, a mais simbólica, abrangem ainda os seus desportistas, artistas, homens de negócios, a banca e grande parte das suas exportações, ficando apenas de fora o sector energético, do gás natural e em pate do petróleo...
Milhares de mortos e feridos e mais de 5,5 milhões de refugiados nos países vizinhos da Ucrânia são a parte visível deste desastre humanitário.
O histórico recente desta crise no leste europeu pode ser revisitado nos links colocados em baixo, nesta página.