Como o Novo Jornal noticiou em Dezembro de 2020, muito dificilmente o gesto do antigo Presidente dos Estados Unidos da América, Donald Trump, em reconhecimento da soberania de Marrocos sobre o Saara Ocidental, ou República Árabe Saaraui Democrática (RASD), que desde a década de 1970 reivindicada pela Frente Polisário, ficaria sem consequências.
Uma delas já está a fervilhar no Magrebe, com a Argélia, histórica defensora da RASD, e Marrocos, à beira de um conflito armado. Argel, cujas relações com Rabat são, há décadas, frágeis, começou por cortar o fornecimento de gás a Marrocos, em 2021, e depois, a fechar a torneira do gás para a Europa - via Espanha - que ali chegava através de um gasoduto que atravessa Marrocos - embora criando uma ligação alternativa directa.
O, como muitos analistas admitem, irreflectido gesto de Trump deu, como se esperava, início a uma série de eventos que torpedearam o periclitante equilíbrio no Norte de África.
Desde logo porque, ao aproximar Rabat de Tel Aviv, e ao colocar-se claramente do lado de Marrocos, os Estados Unidos conseguiram que a Argélia não só mantivesse as relações com a Rússia, como as tenha reforçado, especialmente na área militar, criando a "receita" ideal para "cozinhar" mais uma zona de extrema tensão no continente, onde os dois inimigos históricos (Washington e Moscovo), como o prova o conflito na Ucrânia, poderão ver-se na condição de travar uma guerra por terceiros, como sucedeu ao longo de décadas de Guerra Fria, em África, e onde Angola foi um dos mais salientes exemplos.
Todavia, o risco de um conflito armado entre Rabat e Argel é mais possível agora que o foi nas últimas décadas, sendo a "faísca" o velho problema do Saara Ocidental mas a pólvora é agora o desequilíbrio regional gerado pelos acontecimentos gerados a partir da decisão dos EUA em finais de 2020, que deram a Marrocos um forte impulso para assumirem pela força aquela região do sudoeste saariano, que, inevitavelmente, contará com uma forte oposição da Frente Polisário, o histórico braço armado da RASD, e da Argélia.
Como escreve Anthony Dworkin, especialista em política externa do Norte de África no Conselho Europeu para as Relações Internacionais (ECFR, sigla em inglês), "as tensões cresceram entre os dois países e existe agora um risco sério de confronto militar", sendo este crescendo das tensões fruto do problema do Saara Ocidental porque "Marrocos parece sentir que a sua reivindicação de soberania tem agora maior e abrangente apoio internacional" depois de Donald Trump ter mudado o "mapa" por onde e a partir do qual Washington analisa África.
Em confronto, apenas diplomático e económico, para já, estão, não só os dois mais influentes países do Magrebe, região que integra ainda a Líbia, Tunísia e a Mauritânia, além da RASD, como também os dois maiores exércitos, o que faz com que toda esta geografia, cujos últimos anos demonstraram estar a viver um forte desenvolvimento social e económico, possa rapidamente transformar-se numa fornalha de destruição e morte.
Com as declarações de um e do outro lado a crescerem de tom dia após dia, a possibilidade de travar esta escalada está no facto de os dois países terem fortes interesses económicos com a União Europeia, o que faz, recorda ainda Anthony Dworkin, que esta seja uma poderosa força dissuasora de uma rápida degenerescência para um conflito armado de larga escala.
O contributo espanhol para a crise
E uma das primeiras inversões de grande impacto nas relações de Rabat com a Europa depois da alteração do "mapa" de África norte-americano pela Administração Trump verificou-se em Espanha, com Madrid a reparar os danos diplomáticos gerados com o acolhimento de um líder independentista do Saara Ocidental por razões de saúde reconhecendo o projecto político de autonomia daquela região sob soberania marroquina.
Com este gesto, Pedro Sanchez, o primeiro-ministro espanhol, que esteve em Rabat na semana passada, cumprindo um plano de reaproximação entre os dois países, enfureceu a Argélia, que acusou Madrid de "trair" os seus princípios históricos sobre o Saara Ocidental, causando ainda mais adstringência nas já tensas relações entre os dois vizinhos magrebinos.
Aquando da sua visita a Rabat, Pedro Sanches e o Rei Mohammed VI vincaram de forma inequívoca o início de uma nova etapa nas relações bilaterais, conseguida graças à cedência espanhola sobre a sua posição histórica quanto ao Saara Ocidental, geografia sobre a qual manteve um domínio colonial até 1976.
"É um momento histórico", apontou Sanchez.
E já é histórico, nem que seja apenas porque esta aproximação entre Rabat e Madrid poderá detonar as relações entre Argel e Madrid, o que pode levar a novos problemas no fornecimento de gás natural à Europa, especialmente aos países do sul, Portugal, Espanha e Itália, e quando está no fio da navalha a questão da exportação de gás natural e crude da Rússia para os países das União Europeia.
Mas, para a história, é clara a importância da decisão dos Estados Unidos em finais de 2020 a favor de Marrocos para esta alteração estratégica do olhar de Madrid sobre o seu vizinho africano do sul.
A reacção da Argélia ainda não é conhecida na plenitude, mas sabe-se já que o gesto de Madrid desagradou profundamente a Argel, com os media locais a produzirem frases "editoriais" acusando Espanha de "trair o direito do povo Saahraui à auto-determinação", acusando o Governo de Pedro Sanchez de estar a deitar gasolina para uma fogueira sobre a qual não tem nem terá nenhum controlo.
Um gesto "pueril" de Trump ou uma armadilha com prazo de validade?
Como o Novo Jornal escreveu a 05 de Dezembro de 2020, a Administração Trump optou por uma decisão histórica para marcar os seus últimos dias à frente dos Estados Unidos da América (EUA) redesenhando as fronteiras do continente africano, tornando oficial um "mapa" onde Washington reconhece a soberania de Marrocos sobre o Saara Ocidental, um território referenciado pela ONU como sendo disputado pelo Governo de Rabat e pela Frente Polisário mas que Angola reconhece como soberano, sendo um dos 16 países com embaixada da República Árabe Saaraui Democrática (RASD) na sua capital.
Donald Trump, o Presidente dos Estados Unidos que deixou a Casa Branca, no final do seu primeiro mandato, a 20 de Janeiro, optou por focar a sua atenção na política externa em África, continente que ignorou diplomaticamente durante quatro anos, redefinindo as fronteiras de Marrocos ao reconhecer que este país do norte do continente integra soberamente o Saara Ocidental, onde a Frente Polisário luta há 45 anos pela sua independência em nome da RASD, auto-proclamada em 1976.
O mapa reconhecido pelos EUA assume especial relevância porque, apesar de as Nações Unidas manterem a sua posição de considerarem este território como estando em disputa, historicamente determina em definitivo quem ganha e quem perde estas disputas, dando corpo à imagem simbólica de Washington como "polícia do mundo".
O Saara Ocidental é um território ladeado por Marrocos, pela Argélia, pela Mauritânia e pelo Atlântico e os autonomistas consideram Al-Ayun, ou Laiune, como a sua capital e está na lista das Nações Unidas de territórios não autónomos desde a década de 1960, sendo o seu controlo disputado por Marrocos e pelo movimento independentista Frente Polisário que, a 27 de Fevereiro de 1976, proclamou a República Árabe Saaraui com um governo no exílio.
A República Árabe Saaraui é reconhecida internacionalmente por 50 países, incluindo Angola, contando em Luanda com uma das suas 16 embaixadas em todo o mundo, e membro da União Africana desde 1984, o que levou Rabat a abandonar este órgão pan-africano, mas não dispõe de representação oficial na ONU.
A posição de Angola sobre esta matéria é de longa data e pode ser percebida pela presença de uma embaixada em Luanda da RASD.
Ainda em Abril desse ano, 2020, em declarações à imprensa, em Luanda, após audiência concedida pelo Presidente João Lourenço, o então embaixador Bah Cheik Mohamed, prestes a deixar o País, agradeceu o apoio de Angola, que tem encorajado o Reino do Marrocos e a RASD na busca de uma solução negociada para a resolução do diferendo que os opõe.
Porque mudou o azimute de Washington sobre este território?
Os analistas internacionais apontam como razão para a mudança de agulha na política externa norte-americana um acordo feito com o Reino de Marrocos no sentido de trocar o reconhecimento da soberania de Rabat sobre o Saara Ocidental pela abertura de relações diplomáticas entre este país magrebino e Israel, que é uma forma de Washington dar peso e relevância internacional ao seu mais forte aliado no Médio Oriente.
Com o novo mapa de Marrocos reconhecido por Washington, aprovado depois de Donald Trump ter tornado público o reconhecimento dos EUA da soberania marroquina sobre o território, está igualmente em causa a política externa da União Africana, que não reconhece o direito de Rabat sobre a RASD.
Todavia, com a saída de cena de Donald Trump, derrotado pelo democrata Joe Biden nas eleições de 03 de Novembro desse ano, 2020, os Estados Unidos não voltaram a focar a sua atenção nesta parte do mundo nem parece que isso possa vir a suceder em breve, a não ser que as coisas escalem de forma trágica, devido à guerra na Ucrânia, onde toda a diplomacia norte-americana parece estar com os olhos postos.
Isto, porque, também para os Estados africanos, esta repentina deslocação, nesse ano, das atenções dos EUA para África, pode provocar alguma tensão, visto que surge em contramão com a posição generalizada que passa pelo reconhecimento da RASD ou, pelo menos, por uma posição intermédia, apelando ao diálogo como "arma" para resolver o conflito.
A Frente Polisário exigia, até esse volte-face da política externa dos EUA para o Saara Ocidental, a realização de um referendo para definir o destino do território, colónia espanhola até 1975, enquanto Marrocos propunha a indicação de um Governo autónomo para o Saara Ocidental mas obtendo como contrapartida o reconhecimento da sua soberania.
Entre 1975 e 1991 o território foi palco de um violento conflito armado entre as duas partes, que terminou com um cessar-fogo claramente frágil até hoje.
Em 2021 os combates esporádicos foram retomados depois de Marrocos ter tentado abrir caminho à força das armas através da área desmilitarizada de Guerguerat, que tinha sido bloqueada pelos saarauis, levando a Frente Polisário a denunciar o acordo de cessar-fogo.
O regresso da Guerra Fria ao norte de África
Zine Labidine Ghebouli, um reputado analista da política de segurança argelina e do Magrebe, citado por diversos media internacionais, admite que a uma "nova Guerra Fria está de volta ao Norte de África" com Moscovo a apoiar Argel e os EUA a dar apoio a Rabat, e que esta se vai manifestar em três frentes, desde logo a "batalha pela supremacia regional", uma "guerra de propaganda" e a "perseguição a vozes dissidentes" que se vai consolidar à medida que ambos os países somam vitórias na afirmação dos seus laços internacionais e regionais na forma de aliados.
Os analistas temem ainda que esta tensão possa ser usada de um e do outro lado para desanuviar os problemas internos e os protestos sociais que se somam e seguem devido ao crescente custo de vida, tanto na área dos alimentos e combustíveis, como dos bens de consumo não essenciais, muito por causa da guerra na Ucrânia e porque tanto a Rússia como a Ucrânia são os tradicionais fornecedores de cereais a todo o Norte de África e que agora deixaram de fluir como até aqui devido ao conflito.
E a aproximação de Rabat a Israel, com o estabelecimento de relações diplomáticas normais, veio gerar um novo foco de tensão com os argelinos a acusarem Marrocos de estarem a apoiar o histórico inimigo do mundo árabe, numa clara referência ao problema da Palestina, onde Argel historicamente se posiciona do lado da Autoridade Palestina contra Tel Aviv.
Para ajudar a piorar este cenário, as relações entre a Argélia e a França têm fortes sobressaltos ao longo dos anos, tendo alguns episódios marcantes sobressaído como foi o caso da proibição de aviões franceses sobrevoarem a Argélia, ou a chamada do embaixador em Parias para consultas... embora as coisas tenham, entretanto, acalmado.
A União Europeia, que tem actualmente a França na Presidência, é uma das plataformas mais capazes de mediar eventuais conversações entre Argel e Rabat de forma a evitar uma escalada da tensão que possa levar a um conflito aberto que poderia ser trágico para todo o continente africano devido à forte teia de alianças que ambos os países ergueram desde a fase de lutas generalizadas pelas independências nacionais.
As Nações Unidas mantiveram sempre a mesma posição, considerando o Saara Ocidental como uma geografia ainda por descolonizar, mantendo no terreno uma missão, a MINURSO, cujo mandato foi prolongado até Outubro de 2022.