Em entrevista à rádio TSF, o Chefe de Estado cabo-verdiano mostrou-se preocupado com a disseminação em Portugal da agenda anti-imigração da extrema-direita racista e xenófoba, que hierarquiza os cidadãos em função da cor da pele e da origem.
O alerta do PR de Cabo Verde surge numa altura em que o Governo de direita de Portugal, indo ao encontro da sua extrema, sem dados sustentáveis, elegeu a imigração como o principal problema do País, propondo a adopção de novas leis de imigração e da nacionalidade, que essencialmente transformam imigrantes não brancos em suspeitos, até prova em contrário.
Para agradar ao eleitorado da extrema-direita, com este passo, a direita governamental portuguesa adere à cartilha que associa a criminalidade à imigração, apesar de contrariada com evidências técnicas e científicas, demonstradas por instituições credíveis que lidam com esses fenómenos.
Por conseguinte, José Maria Neves pede "ponderação antes de agravar as leis de imigração ou nacionalidade" para os imigrantes dos referidos países africanos. Pede também "justeza nas decisões e uma discussão do assunto sem extremismo".
Essa apropriação pelo Governo da agenda anti-imigração representa uma espécie de legitimação dos extremistas de direita, suas bandeiras e acções. É também um incentivo e uma forma de impunidade para quem dissemina discurso de ódio e comete crimes raciais.
No pedido por igualdade de tratamento, feito pelo Chefe de Estado cabo-verdiano, está implícita uma crítica ao desigual tratamento entre portugueses e africanos nos processos migratórios, situação que traduz a continuidade colonial assente na discriminação e segregação racial.
Nessa percepção anti-imigração, os visados são sobretudo negros, africanos e asiáticos e nunca brancos europeus da Ucrânia, Bósnia, Sérvia ou outros. Outros privilegiados são os judeus sefarditas para os quais Portugal, por "razões históricas" criou um regime excepção para a obtenção da nacionalidade portuguesa, residindo ou não em território português.
A supremacia branca na migração abarca todos os aspectos, incluindo a linguagem. Enquanto os africanos e asiáticos, independentemente das suas qualificações são imigrantes, os ocidentais de cor de pele branca são tratados por "expatriados", o que pressupõe, à partida, que ser branco é sinónimo de qualificações técnicas, científicas e profissionais.
Reagindo a isso de forma caricata, em Moçambique diz-se muitas vezes que "o português parte do Aeroporto de Lisboa como pedreiro e dez horas depois aterra em Maputo Sr. Engenheiro".
Esta caricatura simboliza a herança colonial que estratifica e classifica as pessoas em função da origem e do tom de pele. Segregação racial que se repete nas relações entre o antigo colonizador e os estados africanos, 50 anos depois do 25 de Abril e das independências africanas.
Tal como durante a administração colonial fascista em que a raça definia o destino do individuo e dos países, sempre com primazia para os brancos, com a aplicação dessa agenda da extrema direita, Portugal volta a naturalizar essa forma de discriminação.
Se a colonização era assente na exploração, subjugação dos povos e países e na segregação racial, hoje, parte da sociedade/elite política portuguesa fecha os olhos aos crimes por ódio racial.
Foi assim com o assassinato em Outubro de 2024, na grande Lisboa, de Odair Moniz, imigrante cabo-verdiano morto à tiro na via publica pela polícia. Por este acto bárbaro, os principais poderes políticos, em vez de condenarem veemente e publicamente, reagiram com discrição, desvalorizando-o.
Foi também assim com o actor negro luso-guineense Bruno Candé, 39 anos, morto há cinco anos na via pública em Lisboa com cinco tiros por ódio racial. Entre outros casos.
A morte de Maria Luemba, jovem angolana de apenas 17 anos, em Sever de Vouga, Aveiro, Portugal, a 12 de Junho último, prova que a normalização de politicas extremistas e racistas ou a sua desvalorização, é uma auto-estrada para crimes de ódio e político-raciais.
Luemba foi encontrada morta no seu quarto, em casa, pelo irmão de seis anos, com corda ao pescoço, golpes no pescoço, mãos atadas e sangue no corpo, mas a Polícia Judiciária afirma que não havia indícios de crime.
Mesmo diante das suspeitas da família da Luemba sobre um vizinho branco (claro) que há anos ameaça de morte e com insultos raciais a família e que, em tempos, partira os vidros do restaurante da mãe da jovem angolana, a polícia judiciária fala em falta de indícios de crime.
Apesar das três queixas da família junto do Ministério Público por perseguição activa político-racial por parte do tal vizinho, as autoridades apontaram o suicídio como causa da morte.
Igualmente desconsideraram a ameaça do presidente da Junta Freguesia local para que a família da Maria não contasse nada do que se passou, como relata a estação de televisão TVI.
Nem se sequer fazem caso, ainda de acordo com a TVI, do estranho desaparecimento da única testemunha adulta, a professora do ATL do irmão da Luemba, que também viu a vítima antes da chegada das autoridades que retiraram o corpo da jovem para o hospital.
Atitudes que adensam as desconfianças de que existe uma tentativa de proteger o principal suspeito do crime, que, de acordo com a família, "tudo indica é filho de uma figura poderosa e influente, protegido por um manto de silêncio e impunidade". A mesma impunidade de que gozavam os colonos sempre que assassinassem negros em África durante a ocupação colonial.
Como alguém que se suicida tem as mãos atadas? E porquê que as autoridades tentaram pressionar os familiares a identificar o corpo da Luemba através de fotos, sob o pretexto de os poupar da violência das imagens?
Luemba "vivia com a mãe e sonhava com um futuro melhor. Tinha sonhos, tinha voz, tinha vida. Mas foi silenciada da forma mais cruel possível", lê-se na petição lançada pela família e movimentos negros e anti-racista, e já assinada por cerca de dez mil pessoas, exigindo justiça e assegurando que não se vão "calar enquanto houver um só responsável em liberdade".
Sendo o racismo a principal e mais violenta herança da colonização e da escravatura, só por cinismo político o problema continua arredado das agendas das relações entre os estados africanos e Portugal.
Existindo uma organização como a CPLP que, teoricamente, reúne em igualdade de circunstância Portugal e as suas antigas colónias africanas e Brasil, é difícil compreender que depois de tantos assassinatos por motivações racistas, o assunto continue escondido debaixo dos tapetes dos salões das diplomacias.
Esta questão central devia ser o primeiro passo para descolonizar desses relacionamentos e para o estabelecimento de relações sem mágoas que conduzissem a transformação da CPLP de organização do tipo neo-colonial a instrumento de reconciliação a favor dos povos.
Com José Maria Neves deviam estar todas as vozes de líderes africanos que nos seus países tratam os portugueses com muita dignidade (muitas vezes melhor que os próprios cidadãos nacionais) e que vêm a sua diáspora ser humilhada.
Se Portugal aceita a continuidade colonial, os políticos africanos e brasileiros não podem deixar que os extremistas da direita portuguesa continuem a decidir, tal como no colonialismo, quem, em função do seu tom de pele. deve ou não viver. Porque a reciprocidade no tratamento de todos os migrantes deve estar no centro de qualquer parceria saudável entre estados.
E se a Maria Luemba fosse Ana Sofia, filha de "expatriados" portugueses em Angola?