Moscovo, como as equipas que se tornam campeãs no sofá, assiste, alegremente, ao desafio entre os Estados Unidos e a União Europeia (UE), aliados históricos, que se confrontam num terreno desfavorável para a Europa, que, ao longo da História, sobretudo depois da Segunda Guerra Mundial, tem sido uma espécie de "fauna acompanhante" (expressão moçambicana) dos americanos.
Ao primeiro toque do apito para o início do jogo, Trump, "a tentar ser Imperador do Mundo", como diz Lula da Silva, sem concertação com o histórico aliado e contra a posição de ambos, conversou com o adversário comum, o agressor da Ucrânia, a Rússia, e adoptou a narrativa desta de responsabilização do líder da equipa de Kiev, Volodymyr Zelensky, pelo conflito.
E foi mais longe: chamou Zelensky de "ditador" que se mantém no poder sem eleições, "comediante de sucesso modesto" que fez um "trabalho terrível" no seu País, que "está destruído" e onde "milhões de pessoas morreram desnecessariamente".
Desvalorizando as posições do homem de Kiev, mesmo quando este vocifera que "nada sobre a Ucrânia sem a Ucrânia, nada sobre a Europa sem a Europa", o novo chefe de Washington humilha o colega ucraniano, ao dispensar a sua presença nas reuniões com a Rússia sobre o futuro da Ucrânia, porque, afirma, "não é muito importante" e "não tem cartas" para "jogar" nas negociações.
Perante as ameaças de Washington e percebendo que a realidade é muito diferente da comédia televisiva "Servo do Povo", em que representa Vasyl Petrovych Goloborodko, um professor do ensino secundário que chega à presidência da Ucrânia com muito sucesso, Volodymyr Zelensky acabou por admitir a hipótese de deixar a chefia do Estado em troca da paz.
Nas negociações directas com Moscovo para a paz na Ucrânia, o antimultilateralismo Trump, que faz do jogo político um desafio de playstation, deixa de fora a sua quase-ex-aliada-permanente UE, bem como o Reino Unido da "special relationship".
Talhada para obedecer e cumprir os desejos de Washington, em troca de protecção militar, política e económica, a Europa, adormecida sob o seu passado colonial-imperialista e escravocrata em África, Ásia e Américas, está a pagar o preço de ter ignorado a criação de projectos de defesa ou autodefesa comum.
Tal era a fé inabalável na aliança com os americanos, que se convenceu de que não precisaria de investir no sector de defesa porque tinha as garantias de que Washington cumpriria ad eternum a missão de pai-protector, no âmbito da NATO ou bilateral.
Europa que agora se queixa dos EUA, mas que, ao alongo de décadas, preferiu acompanhar Washington na sua campanha de ostracização e diabolização do seu vizinho mais próximo, a Rússia.
Apesar de o jogo estar ainda no início, a goleada de Washington sobre Bruxelas é tão avassaladora que já provocou chicotadas psicológicas sobre treinadores. Na maior economia europeia, Alemanha, o chanceler Olaf Scholz, do SPD, esquerda, averbou uma derrota humilhante (16%), em eleições antecipadas ganhas com 29% por Friedrich Metz, da União Democrática Cristã, direita.
Nessas eleições, com apoio de Trump, principalmente do seu braço direito e esquerdo, o megamilionário Elon Musk, a nazi Alternativa para a Alemanha (AfD), também pró-russa, com 21%, tornou-se na segunda força, provocando a maior hecatombe política na Alemanha desde a Segunda Guerra Mundial.
Os ataques americanos à Europa são em catadupa e desferidos pelos principais protagonistas da nova orquestra americana que, para além do maestro Trump, integra o seu adjunto J.D. Vance, Marco Rubio, secretário de Estado, e Elon Musk.
Para espanto e indignação dos políticos europeus, até em casa, o velho continente é atacado pelo poder americano, como fez em Munique, na Alemanha, J.D. Vance, ao comparar, a Europa, a uma autocracia "limitadora da liberdade de expressão".
Habituada a autoconsiderar-se arauta da liberdade, da democracia e do respeito pelos direitos humanos, a União Europeia percebeu que foi destratada e humilhada da mesma forma que faz com os Estados que se recusam a seguir a sua cartilha.
Surpreendidos com a linguagem, frontalidade e desconsideração do aliado de sempre, a Europa reage como uma barata tonta, desorientada, mostrando falta de liderança e de firmeza. Sem equipa para uma remontada, a Europa vulgarizada ou qualquerizada (neologismo moçambicano) pelos americanos, transformada em actor irrelevante do cenário mundial e da definição de uma Nova Ordem Internacional distópica, arquitectada por Trump e sua turma, mostra-se confusa e desunida.
Em vez de falar a uma só voz, mostra dissonância entre si. Para responder aos americanos, num dia o capitão autoproclamado Emanuel Macron, de França, reúne uma espécie de equipas da primeira divisão, a seguir, depois de protestos da segunda divisão e das distritais, faz outro encontro com estas, mas já sem qualquer importância.
A qualquerização da orgulhosa e arrogante Europa parece um caminho rumo à precipitação do fim da NATO que, para muitos europeus, nomeadamente o recém-eleito chanceler alemão, Freidrich Merz, pode ter deixado de servir os interesses europeus.
Por isso mesmo, confrontado com o silêncio de boa parte do mundo e sem medo da incontinência verbal e da retaliação de Trump, Lula da Silva adverte o administrador da Casa Branca que é "importante respeitar a soberania de cada país, porque isso fortalece a democracia". Trump, continua o chefe de Estado brasileiro, "está a tentar dar a sua opinião sobre todos os países, sobre todas as políticas públicas".
Entretanto, enquanto atacam directa e ostensivamente a Europa, Trump, Musk, Vance e Rubio vão mostrando que a China, nova potência económico-financeira e tecnológica, com forte presença em África e no resto do Mundo, é o seu calcanhar de Aquiles.
Diante disso, a estratégia de Washington passa por tentar atingir o poderio económico da China, através do aumento das tarifas de todas as importações chinesas e de bullying político e económico contra Pequim.
Para a Administração Trump, a China é o principal obstáculo mundial, uma pedra no sapato da sua campanha pela morte do multilateralismo e controlo absoluto do Mundo, sobretudo do digital e Inteligência Artificial.
Para essa campanha contra a China, o misógino, homofóbico e fascista Trump, usando da habitual batota da extrema direita, vai fazendo boa-muxima a Vladimir Putin com o qual tem maior proximidade política do que com o seu antecessor, o democrata Joe Biden ou com a qualquerizada Europa.
Ainda no quadro da indisfarçável estratégia, Washington objectivamente empenha-se em tentar separar a Rússia da China de Xi Jinping, que ao longo dos três anos da guerra na Ucrânia se afirmou como parceiro leal e solidário de Moscovo.
O desentendimento sino-russo, provocaria a inevitável cisão nos BRICS, que representa 40% da população e 27% do PIB mundiais e que se prepara para lançar a sua própria moeda, uma séria ameaça ao dólar americano.
Tanto a nível bilateral como multilateral, nomeadamente no Conselho de Segurança da ONU, onde Pequim nunca apoiou as resoluções de condenação da Rússia pela agressão à Ucrânia, ou nos BRICS, em que ambos são estruturantes, as relações sino-russas hoje mostram solidez e provam que a crise sino-soviética da segunda metade do século XX está enterrada.
Enquanto isso, internamente, o quase-imperador mundial, em acelerado passo para a destruição da América e do seu modus vivendi, também opta por limitar a liberdade de imprensa.
Proibiu, por tempo indeterminado, a entrada de jornalistas da agência noticiosa norte-americana Associated Press (AP) na Sala Oval e no Air Force One por terem utilizado a designação mundial Golfo do México em vez de "Golfo da América", inventada por Trump.
Igualmente, desencadeou purgas em diversos departamentos da Administração, incluindo no Pentágono, de onde demitiu o chefe de Estado Maior das Forças Armadas para travar as políticas de inclusão e diversidade entre os militares.
Moscovo pode confiar num adversário instável que aparentemente lhe oferece numa bandeja de prata a capitulação da Ucrânia em troca de um laissez-faire e laissez-passer de destruição para a subjugação do mundo inteiro?
Derrotada da Guerra-Fria, a herdeira da União Soviética certamente sabe que trocar Pequim por Washington seria, por um lado, uma aposta arriscada, e por outro, mais uma derrota de repercussões inimagináveis para Moscovo e o Mundo.