O também jornalista, que falava, esta segunda-feira, à margem de uma mesa-redonda sobre "Liberdade e Memória: O 27 de Maio em Angola", em Luanda, organizada pela Universidade Católica angolana, sublinhou que o Movimento Popular de Libertação de Angola (MPLA, no poder) tem em Agostinho Neto uma "figura santa".
"Sendo Agostinho Neto o primeiro Presidente, o fundador da República Popular de Angola, não estou a ver este e o outro MPLA - aliás, essa era a grande dificuldade do MPLA de Eduardo dos Santos [ex-Presidente] e vai ser a grande dificuldade de João Lourenço [actual chefe de Estado] - dessacralizarem Agostinho Neto", referiu Reginaldo Silva.
O analista político lembrou que em 07 de Setembro de 2022 vai celebrar-se o centenário do nascimento de Agostinho Neto e "estão aí a preparar-se umas festanças".
"Não acredito que o MPLA se liberte de Agostinho Neto, dessacralizando-o e responsabilizando-o, porque, do ponto de vista político, as pessoas, quer queiram quer não, sejam as que estão mais de um lado ou do outro, hoje podem contornar Agostinho Neto. Sem dessacralizar Agostinho Neto vai ser muito difícil aprofundar o debate e a investigação sobre o "27 de Maio'", declarou.
"Agostinho Neto foi a figura central do "27 de Maio' no plano da repressão. Abriu as portas da repressão e permitiu todos esses excessos que, para mim, não foram só excessos, nem uma resposta desproporcionada, foi algo mais, foi uma eliminação selectiva dos adversários a uma escala nacional", acrescentou.
Em causa está o decreto presidencial de 26 de Abril passado, em que João Lourenço ordenou a criação de uma comissão para elaborar um plano geral de homenagem às vítimas dos conflitos políticos que ocorreram em Angola entre 11 de Novembro de 1975 (dia da independência) e 04 de Abril de 2002 (fim da guerra civil).
No decreto, João Lourenço inclui entre os conflitos a "intentona golpista do '27 de Maio' ou eventuais crimes cometidos por movimentos ou partidos políticos no quadro do conflito armado", quebrando o silêncio sobre um tabu que durou 41 anos.
A decisão surgiu depois de, em Novembro de 2018, o ministro da Justiça angolano, Francisco Queirós, ter anunciado a "Estratégia do Executivo de Médio Prazo para os Direitos Humanos 2018/2022", em que o Governo de Luanda reconhece, pela primeira vez, que, após o "27 de Maio", registou-se um "cortejo de atentados aos Direitos Humanos", considerando-o "um dos mais relevantes" da História do país.
Em 27 de Maio de 1977, passaram na segunda-feira 42 anos, uma alegada tentativa de golpe de Estado, numa operação aparentemente liderada por Nito Alves - então ex-ministro do Interior desde a independência (11 de Novembro de 1975) até Outubro de 1976 -, foi violentamente reprimida pelo regime de Agostinho Neto.
Seis dias antes, em 21 de Maio, o MPLA expulsara Nito Alves do partido, o que levou o antigo ministro e vários apoiantes a invadirem a prisão de Luanda para libertar outros simpatizantes, assumindo, paralelamente o controlo da estação da rádio nacional, ficando conhecido como "fracionistas".
As tropas leais a Agostinho Neto, com apoio de militares cubanos, acabaram por estabelecer a ordem e prenderem os revoltosos, seguindo-se, depois, o que ficou conhecido como "purga", com a eliminação das fações, tendo sido mortas cerca de 30 mil pessoas, na maior parte sem qualquer ligação a Nito Alves, tal como afirma a Amnistia Internacional em vários relatórios sobre o assunto.
Nas declarações à Lusa, Reginaldo Silva mostrou-se contra a eventualidade de se criar uma Comissão da Verdade, considerando que não existem condições em Angola para tal, uma vez que "a maior parte das pessoas que participou do lado da repressão ainda está viva e muito dificilmente aceitaria um desafio destes".
"Do outro lado, as pessoas acusadas de terem sido os golpistas, ou de terem estado na origem do processo, a esmagadora maioria está morta, foi fuzilada. Vamos fazer uma Comissão da Verdade como? Com quem? Vamos ter pessoas a contar a sua história e do outro lado não há contraditório. Acho que, politicamente, ainda não há condições. Mas também acho que, com o passar do tempo, então não vai haver mesmo a Comissão da Verdade porque vão todos morrer", frisou.
"No imediato, aproveitando esta boa maré de João Lourenço, esta boa vontade, há que fazer mais qualquer coisa. Penso que a questão do levantamento era importante, porque o Governo terá uma base estatística que lhe permitirá, depois, avançar para a solução dos problemas que foram sendo criados. A nível político, também não estou a ver o MPLA de João Lourenço a avançar mais do que já avançou", acrescentou.
Para Reginaldo Silva, o "grande desafio" é o seguinte: "Se o Governo de João Lourenço quiser levar isso a sério, a primeira grande medida, além desta boa vontade, era fazer este levantamento. Afinal, quantas pessoas foram vítimas, quantos morreram, quantas foram fuziladas, quantas estão desaparecidas? Aí sim, já sentiria algo mais do que uma intenção política".
"Este documento, que saiu agora, que enquadra todas as vítimas de todos os conflitos desde 1975 a 2002, penso que foi o possível que João Lourenço conseguiu a nível de consenso no seio da sua própria direcção política, o Bureau Político. João Lourenço continua a ser um líder de um partido, por mais que tenha de ser o Presidente de todos os angolanos. É um pouco difícil a sua quadratura do círculo", acrescentou