NJ - A UNITA está prestes a conhecer o seu quarto presidente, após 17 anos da morte do líder fundador. Até então, conhecem-se alguns nomes que manifestamente já deram indicações de que vão avançar para as "primárias", nomeadamente dois, Adalberto Costa Júnior e José Pedro Kachiungo. Fala-se também de Gato, Numa,. e há ainda quem tivesse avançado os nomes de Raul Danda, Massanga e Liberty. Qual destes nomes mais lhe salta à vista e porquê?

SJ - Todos estes nomes possuem várias qualidades para serem líderes. Neste momento, antes da campanha, há um denso nevoeiro de especulações que às vezes impede uma análise objectiva das coisas. Não estou muito confortável para dar muita importância a uma só figura. Muitos partidos políticos africanos, ou mesmo organizações, são instáveis porque prosperam muito à volta de uma só figura. Por todas as suas falhas e instintos autoritários, que já foram amplamente realçadas e criticadas, o doutor Savimbi criou uma organização com estruturas auto-sustentáveis e com uma autonomia relativa. Uma análise séria das dissensões que o doutor Savimbi teve que enfrentar em 1991 e 1992 tem muito a ver com a tarefa de modelar uma organização com várias estruturas numa entidade centralizada sem ter o Estado com os seus instrumentos financeiros e coercivos na mão. Curiosamente, são estas várias estruturas que garantiram, em parte, a sobrevivência da UNITA. No continente africano, não conheço nenhum partido formado nos anos de 1960, que não foi ao poder, que têm a mesma expressão e vitalidade como a UNITA.

NJ - Ao contrário dos outros anos de eleições «primárias» na UNITA, desta vez o tema da sucessão ganhou uma outra dimensão, sobretudo porque oficialmente Samakuva não pôs uma pedra definitiva sobre o assunto de uma putativa recandidatura. Fora das hostes da UNITA, há inúmeras vozes do tipo «treinadores de bancada» que quase já não admitem sequer por hipótese a presença de Samakuva à frente da UNITA. Isto é sintomático de algum desapego ou desencanto para com a figura do até aqui presidente do partido?

SJ - Há, sim, muitos "treinadores de bancada". Uma vez propus que deveria haver primárias na UNITA em que qualquer angolano, independentemente das suas filiações partidárias, pudesse participar. Naturalmente, no nosso clima tão bipolarizado, isto invoca cenários que atormentam alguns actores políticos da UNITA, porque a ideia que fica é a de que vão haver candidatos metidos por outro partido, mas ao fim do dia este mesmo que votaria na UNITA seria o candidato por exemplo pelo MPLA. Nos EUA, por exemplo, há Estados em que democratas e republicanos podem votar nas primárias dos dois partidos. Haveria, por exemplo, primárias só de delegados do partido que iriam eleger, por exemplo, quatro candidatos. Depois o público em geral iria eleger o melhor dos dois. O processo de eleger o líder da UNITA, todo o público passaria a ter uma ligação profunda com o mesmo. Tenho dificuldades em imaginar alguém que elegeu uma figura para ser presidente de um partido votar para alguém de um outro partido com que ele não tenha a mínima ligação. Com isto quero dizer que, em vez de a UNITA ver os "treinadores da bancada" como visitas indesejáveis, tudo tem que ser feito para a sua inclusão na grande tenda da UNITA. A política numa democracia tem a ver com números, no fim do dia.

NJ - De que modo resumiria a presidência da UNITA, desde que Samakuva chegou à liderança do partido?

SJ - Estabilidade e continuidade.

NJ - E o que pensa que foi marcadamente um traço identitário na UNITA de Samakuva? Ou que características pensa ter imprimido Samakuva que o distanciou da UNITA de Jonas Savimbi, por exemplo?

SJ - O mais-velho Samakuva foi uma componente chave para a sobrevivência da UNITA. Só quem não sabe em que condições o partido estava em 2003 pode alinhar com certas avaliações injustas da sua presidência. Um dos grandes ganhos da sua presidência, que não é muito notável para muitos, é a legitimação da UNITA em muitos corredores internacionais. O mais-velho Samakuva conseguiu harmonizar as várias estruturas do partido sem necessariamente ter que criar uma estrutura altamente centrada semelhante ao tempo da guerrilha. O segmento central do partido manteve-se intacto. Quando o mano Abel foi formar a CASA-CE, pensava-se numa ruptura significativa na UNITA, que não aconteceu. Uma outra dimensão louvável da presidência de Samakuva foi o facto de ter promovido a ideia de que o que está em questão é o bem-estar da nação inteira. Muitos de nós da diáspora angolana passámos a conhecer o resto da nação angolana através das reportagens que seguiam as suas digressões. O doutor Jonas Savimbi foi forjado num outro contexto. De 1976 a 1983, ele foi chave para a sobrevivência da UNITA. Penso que o mais velho Samakuva fez o mesmo papel num outro contexto a partir de 2003. Isaías Samakuva é um diplomata consumado, ao passo que Jonas Savimbi foi mais um homem que tinha uma noção muito apurada do poder nas suas várias manifestações, o que resultava às vezes em tiques maquiavélicos. Este já não foi o caso do mais-velho Samakuva.

NJ - E havia esta necessidade de a UNITA afastar-se, por exemplo, de grande parte do legado de Jonas Savimbi?

SJ - Tem havido muito esforço na UNITA de enaltecer o que é caracterizado como sendo o ensinamento ou legado do doutor Savimbi. Em muitos casos, isto não passa de retórica. O Doutor Savimbi aprendeu com os maoistas a importância de manter uma base sólida rural. Tenho viajado para o interior de Angola - incluindo áreas onde a UNITA goza de muito apoio. Tenho notado uma gritante falta de iniciativas por parte da UNITA para mobilizar e organizar as pessoas. A questão não é só esperar para que o povo, notando as insuficiências do governo, vote na UNITA nas eleições. A UNITA poderia organizar escolas, hospitais, programas para aumentar os produtos agrícolas. Durante a guerra, a UNITA era capaz de organizar as populações com os poucos recursos que tinha. No fim do dia, é uma questão de ideias, estratégias, e de capacidade de concretizá-las.

NJ - E hoje, independentemente de quem venha a ser o vencedor nas eleições "primárias" na UNITA, já é possível apontar uma receita para que o partido se volte para a sua base fundadora, pelo menos política?

SJ - Eu defendo a ideia de que a UNITA tem que passar a ter grupos de reflexão sérios. Um partido não é necessariamente uma associação para a preservação da história. Nas organizações, existe sempre o perigo de tentar conduzir as coisas olhando através do retrovisor. Um partido existe para formular uma visão de como o país deve ser governado, para organizar os seus militantes, para servir como uma força moral, para ser altamente relevante, e para ganhar votos. Isto significa que tem que saber identificar os grandes desafios nacionais e também traçar possíveis soluções. Este processo muitas vezes não é possível quando se depende somente do líder e de um grupo restrito à sua volta. A UNITA tem que ser relevante. Os desafios de hoje - um índice elevadíssimo de desemprego elevadíssimo, discrepância gritantes de níveis de vida nas classes sociais, sistemas de saúde e de educação fraquíssimos - exigem soluções altamente criativas. Tem que haver estruturas no partido para produzir soluções e que promovam a inclusão.

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