As Forças de Defesa de Israel (IDF), como previsto no acordo mediado pelos EUA, Catar e Egipto, começaram a retirar para lá de uma linha imaginária mais próxima da fronteira.

E, como mostram as Tv's de todo o mundo, centenas de milhares iniciaram o regresso aos escombros das suas antigas casas, não para as ocuparem, mas para procurar os seus familiares desaparecidos.

Dos relatos feitos pelos jornalistas que permanecem no terreno, mesmo que mais de 240 tenham sido mortos pelas IDF desde 07 de Outubro de 2023, as prioridades dos sobreviventes surgem bem definidas: procurar comida, tratar os doentes e encontrar os seus mortos sob os escombros de Gaza.

Depois de um breve e eufórico período de festejos pelo fim dos combates, rapidamente as estradas, agora livres da artilharia israelita, se encheram com milhares de famílias rumo a norte depois de longos meses como refugiados nos campos de "concentração" criados por Israel no sul.

Com as máquinas de rasto que sobraram da destruição implacável de todo o território, onde é raro, nos seus 356 kms2, encontrar uma casa de pé, e com as próprias mãos, os escombros começam a ser removidos para encontrar os corpos dos desaparecidos que algumas organizações internacionais admitem poder chegar aos 400 mil.

Apesar do cessar-fogo, que é a primeira fase do acordo de paz assinado no Egipto, embora sem a presença de Israel e do Hamas, o domínio do território ainda não saiu das mãos de Telavive, porque os jornalistas internacionais continuam sem poder entrar em Gaza e a ajuda humanitária tarda a chegar.

A Agência da ONU para os Refugiados da Palestina (UNRWA) pede com insistência a Israel que autorize a entrada de jornalistas dos grandes media internacionais no terreno.

O que é um passo fundamental para confrontar o Governo israelita de Benjamin Netanyhau com a sua versão de que os jornalistas palestinianos são todos "instrumentos do Hamas" e agem como tal nas suas reportagens, no que tem sido um discurso recorrente para diluir o drama que é o assassínio de 247 jornalistas nestes dois anos.

E a ajuda humanitária prometida e abundante está também longe de ser já uma realidade, porque, como relata Hind Khoudary, da Al Jazeera, em Deir Al Balah, no posto fronteiriço de Kissufim, um dos mais importantes para essa ajuda chegar a quem dela precisa, longas filas de camiões aguardam autorização de Telavive.

Este cenário acontece mesmo que o cessar-fogo já esteja em vigor há 48 horas e alimentar os esfomeados de Gaza seja um dos seus pontos prioritários, o que permite a alguns analistas menos crentes na bondade deste plano de paz começar a duvidar.

Apesar deste atraso inexplicável, para esta terça-feira,14, as agências da ONU no terreno esperam que pelo menos 600 camiões com ajuda humanitária, uma gota num oceano de necessidades, como sublinhava António Guterres, Secretário-Geral da ONU, possam começar a entrar em Gaza.

Mas não é apenas a questão da ajuda humanitária que mostra cedências na confiança que o acordo mediado por norte-americanos, catarenses e egípcios precisa urgentemente de provar.

Também no que respeita à troca de reféns israelitas com prisioneiros palestinianos nas cadeias israelitas mostra que em Telavive se resiste à pacificação total.

Porque entre os 2.000 palestinianos libertados devia estar e à última da hora saltou da lista um dos mais conhecidos e respeitados médicos no território, Abu Saifa, apesar do clamor internacional para a sua libertação.

Do lado do Hamas, os 20 reféns vivos e os cerca de 40 mortos, na maioria durante ataques das IDF, estão a ser devolvidos de acordo com o planeado, mas Abu Safia, raptado no Hospital de Gaza pelas IDF, em, Dezembro de 2024, devia já ter chegado ao território e permanece nos calabouços das cadeias israelitas.

Abu Safia é visto em Gaza como a cara da corajosa resistência dos médicos palestinianos que, apesar da destruição de todos os 36 hospitais de Gaza, total, a maioria, ou parcialmente, poucos, continuaram a ajudar os milhares de feridos dos bombardeamentos das IDF que a eles recorriam, mesmo que pouco ou nada houvesse para os aliviar do sofrimento.

E agora, mesmo depois de quase um ano detido, e quando o seu nome estava na lista dos 2.000 prisioneiros palestinianos, incluindo dezenas de crianças, à última da hora saltou sem que qualquer explicação fosse dada por Telavive, embora exista ainda a possibilidade disso vir a suceder nas próximas rondas de libertações.

Entretanto, o Irão...

Depois de um discurso flamejante no Knesset, o Parlamento israelita, na segunda-feira, onde Donald Trump vincou repetidamente a ideia de que este plano é mesmo "de paz" e não como os anteriores, para queimar tempo, insistindo que nem o Hamas nem Israel têm como não o cumprir, o tema do Irão volta a entrar no foco mediático global.

Isto, porque Donald Trump, depois de semanas a fio a insistir que o programa nuclear iraniano fora "obliterado" nos ataques norte-americanos de Junho, depois de 12 dias de guerra israelo-iraniana, aproveitou o ensejo para propor um plano de paz com o Irão e que este só não se materializa se Teerão não quiser.

O Presidente norte-americano diz mesmo que "a bola está do lado iraniano", o que está a ser visto como uma forma de pressionar o Irão para ceder nas suas pretensões de robustecimento militar e retirar espaço de justificação a Benjamin Netanyhau para beber de uma nova frente de guerra com Teerão a protecção para o que o espera internamente com a chegada da paz.

É que o primeiro-ministro Benjamin Netanyhau tem várias frentes de "guerra" interna que podem ser, pessoalmente, mais devastadoras que a de Gaza e do Irão, como, desde logo, o processo judicial onde está acusado de crimes graves, como corrupção e peculato e que será reactivado em força assim que a situação externa acalmar.

E depois, naquilo que alguns analistas, como o próprio Gideon Levy, jornalista do Haaretz, o maior jornal israelita, e analista com mérito reforçado pelas suas denúncias dos crimes do Governo israelita, referem poder ser devastador para Netanyhau.

Que é a crescente suspeita que sobre si recai no contexto da inépcia demonstrada por Israel ao não detectar a ruidosa preparação do assalto do Hamas e da Jihad Islâmica ao sul de Israel a 07 de Outubro de 2023.

Do ponto de vista político, Benjamin Netanyhau está igualmente envolvido num drama interno, com os líderes dos dois partidos radicais, tanto ideologica como religiosamente, que sustentam o seu Governo, a ameaçarem que o deixam cair se parar a guerra contra os palestinianos.

Itamar Ben Gvir, ministro da Segurança Nacional, e líder do partido de extrema-direita Otzma Yehudit, e Bezalel Smotrich, ministro das Finanças, e líder do Partido Nacionalista Religioso-Sionista, defendem publicamente a destruição e a expulsão dos palestinianos e a ocupação do Grande Israel histórico, que engloba quase todo o Médio Oriente mediterrânico.

E a condição para impedirem o derrube do Governo de Netanyhau e a queda deste nas mãos da Justiça, é que a guerra continue em Gaza, que a expansão dos colonatos não pare, tanto para Gaza como para a Cisjordânia, e que não seja assinado qualquer acordo com o Hamas até ao aniquilamento de todos os seus membros.

Este contexto dramático para a viabilidade política de Netanyhau é uma das razões aduzidas pelo Irão para duvidar da proposta de paz de Donald Trump, alegando as autoridades de Teerão que estas palavras não encaixam nas acções de Washington e de Telavive.

O ministro iraniano dos Negócios Estrangeiros, Abbas Araghchi, respondeu a Trump dizendo-lhe que as suas palavras "contrastam com a hostilidade e comportamento criminoso dos EUA para com o povo iraniano".

"Como pode alguém dizer que quer a paz com um país quando lhe ataca áreas residenciais, matando mais de mil pessoas, e as sua infra-estrutura nuclear civil durante as negociações sobre o próprio programa nuclear, e depois diz que quer paz e amizade?", questiona Abbas Araghchi.

É que Teerão sabe que os EUA fizeram recentemente deslocar para a sua base militar de Al Udeid, no Catar, a maior na região do Golfo Pérsico, uma poderosa máquina de guerra, incluindo aviões-cisterna, que são indispensáveis a Israel para abastecer os seus bombardeiros em pleno ar, permitindo-lhes alcançar o Irão.

E, como vários analistas sublinham, quase sem excepção, quando os EUA deslocam tantos meios para Al Udeid, é porque está para acontecer uma operação militar de grande envergadura,

A última vez que tal sucedeu foi em Junho deste ano, quando Israel lançou uma vaga de ataques contra o Irão, dando início à "Guerra dos 12 dias", como a baptizou Donald Trump, e que culminou com o ataque dos EUA às instalações nucleares iranianas com recurso aos famosos bombardeiros de longo alcance B2.

Trump, nessa altura, disse que as suas poderosas máquinas voadoras obliteraram totalmente a infra-estrutura nuclear iraniana. O que o deixa agora sem justificação para apoiar ou lançar novo ataque contra Teerão.