Aquele foi o meu primeiro contacto com o comboio do CFB, era uma máquina Garran (havia também a Montanha e a Nona, depois substituídos nos anos 1970 por máquinas a diesel), motor a vapor, alimentado por carvão mineral ou lenha de eucalipto, que puxava várias carruagens em direcção ao Leste. Passados dois anos, fui viver com a irmã do meu pai, casada com um ferroviário. A partir daquela data a minha infância e adolescência foram profundamente marcadas por quase tudo que se passava no seio do pessoal e ao longo da linha férrea do CFB. Parei em todas as principais estações do CFB, da Restinga no Lobito à Teixeira de Sousa, hoje Luau. Recordo-me da beleza da estação do Luso (hoje Luena), era uma paragem empolgante e movimentada.

Passamos (em companhia do meu primo) a carregar o baú de mantimentos à estação, sempre que o meu tio saísse em serviço de viagem como condutor do comboio de material. Noite e dia víamos os comboios carregados de minérios, que hoje sabemos que vinham do Congo e da Zâmbia, pois na altura não sabíamos que se tratava, e diversos outros materiais, incluindo viaturas e carruagens de combustíveis. Os bairros residenciais do pessoal maior do CFB, os "Tejes", eram zonas nobres. Os ferroviários do CFB tinham acesso ao armazém de bens alimentares e industriais, pagando com a caderneta, creio que depois era deduzido do salário. As vilas ficavam movimentadas com a chegada do pagador do pessoal menor.

A Companhia do Caminhos-de-Ferro de Benguela (CCFB) foi construída com a ambição das potências coloniais escoarem o minério da região central da África para a Europa. A sua construção iniciou entre 1883, num trecho de 23 km, ligando Catumbela à Benguela. Entretanto, por falta de locomotivas viria a paralisar, retomando-se a construção em 1899, com o lançamento da licitação, que viria a ser atribuída à Robert Williams, engenheiro britânico, que liderou o projecto entre 1901 a 1931, altura que a linha férrea atingiu a região de Catanga. O CFB tem uma extensão de 1866 km, sendo que 1344 km somente em Angola, outros 500 km no interior ocidental da República do Congo (RDC), interligando o sistema ferroviário da Zâmbia. Através da ligação à Zâmbia é possível chegar-se à cidade da Beira, em Moçambique, e a Dar es Salã, na Tanzânia, junto ao oceano Índico. Também se encontra ligada indirectamente ao sistema ferroviário da África do Sul, sendo, desta feita, a companhia que faz parte de uma rede ferroviária transcontinental. Entre 1931 à 1974 é descrita como tendo sido um negócio muito lucrativo.

Imediatamente, após a independência, o CFB foi nacionalizado, tendo, a partir daí, iniciado o pesadelo do desmoronamento. O comboio de material que quis fugir na minha infância já não circulava, o comboio que chamavam de camacovi (composição de carruagens de material e com uma ou duas de passageiros), também deixou de circular. O comboio mala, que passava às terças-feiras e às sextas-feiras, aos domingos e às quintas-feiras findava em Silva Porto Gare, hoje Cunje, regressava ao Lobito, também deixou de circular. Eram sinais do início de uma grande derrocada do CFB, que muitos jovens daquele tempo aspiravam suceder os seus progenitores.

Segundo o Relatório do Banco de Angola, em 1973, o CFB foi a terceira companhia mais rentável do mundo. Não tenho dúvidas que assim tenha sido, pois testemunhei a intensa actividade da companhia nesta altura nas localidades onde residíamos. O meu falecido pai, agricultor, alugava duas a três carruagens para transportar a sua produção para o Leste (Luso, hoje Luena), onde os preços eram mais vantajosos. Era, por conseguinte, o grande meio para o escoamento da produção agrícola para os centros de grande consumo. O seu estrangulamento, devidamente explorado pela guerrilha, nos anos da guerra civil, provocou profundas distorções na economia angolana.

Entretanto, tendo conhecido o nível de profissionalização de algumas pessoas envolvidas nas operações de exploração do CFB, o rigor que imperava na actividade operacional, não é muito difícil aferir que o novo modus operandi, com a sua nacionalização, influenciariam a gestão deste monstro adormecido. Porque é que uma companhia de sucesso, tornou-se num grande peso para o Orçamento Geral do Estado (OGE), em vez de fonte de receitas públicas? Muitas têm sido as justificações para o insucesso do CFB, particularmente depois da sua reabilitação. Pois no período entre 1976 a 2002, não havia condições de segurança para a exploração do CFB. Entretanto, depois da sua reabilitação, a operacionalização da companhia está longe do razoável. A que se deve?

Em meu entender, uma das razões é explicada pela não observância dos dois pilares do capitalismo, a propriedade e o contrato, que já foi alvo de uma abordagem neste espaço. O tipo de propriedade vai nos conduzir na forma como a empresa é governada (os mecanismos de governação corporativa), o que nos leva a avaliar o desempenho da gestão. Portanto, a nacionalização da companhia, que foi um acto de soberania, após a independência nacional, determinou a gestão do património do CFB, de que resultou a degradação e a perda de activos (refiro-me a terrenos, residências, etc.), que a empresa perdeu, em que a guerra não teve influência. Portanto, não estaríamos a ser injustos ao afirmar que grande parte dos problemas que a companhia enfrenta são inerentes a gestão. Referi, também, num dos artigos passados, que a economia é como uma engrenagem, se se desengajar um dos carretos o movimento fica comprometido. Como se pode imaginar a economia funcionar bem, sem uma das engrenagens tão críticas, como o CFB?

Walter Marques, em Moeda e Mercados Financeiros, faz uma analogia do funcionamento do corpo do humano interessante, que uso para explicar a importância do sistema financeiro e vias de comunicação numa economia. Refere o autor que numa economia o sistema financeiro é como o coração no corpo humano, que se estiver a funcionar bem bombeia o sangue (a riqueza) a todos os pontos do corpo através do sistema circulatório (as veias), referindo-se as vias de comunicação, ferroviárias e rodoviárias, sem as quais a riqueza (o sangue), não circula no corpo humano, ou seja, entre os territórios que a compõem, desarticulando o bom funcionamento do corpo, aqui referindo-se a economia. Por conseguinte, o CFB para a economia angolana é, talvez, a engrenagem sem a qual, tudo funciona com muitas dificuldades.

O normal funcionamento do CFB teria um impacto muito positivo na economia angolana. Veja-se que, em 1973, se estima que o CFB empregava cerca 16.500 pessoas (contra a actual estimativa de 1.800 pessoas), o tráfego atingiu 152.069.858 passageiros-quilómetro, o transporte de mercadorias foi de 2.566.364.000 toneladas-quilómetro comerciais, e de 75.273.000 toneladas-quilómetro de serviço.

Até 1974, a capacidade anual de transporte da linha passou de 3.000.000 para 10.000.000 toneladas, nesse período, o facturamento rondava os 30 milhões de dólares norte-americanos (Relatório da Companhia dos Caminhos-de-Ferro de Benguela, Lisboa, 2008). O CFB, em vez de peso para o OGE, seria uma fonte de receitas públicas, pela via do Imposto Industrial, pelo Imposto de Valor Acrescentado (IVA) e pelo Imposto de Rendimento do trabalho, sem esquecer que seria também uma fonte de divisas, ao escoar os minérios dos vizinhos a Leste, aliás, para as quais foi inicialmente criado, configurando-se num monstro adormecido, que precisa de ser, efectivamente, ressuscitado com urgência, sem o qual, a animosidade de relançamento da economia será muito difícil de ser realizado...