Sergei Lavrov chegou ao final da tarde de terça-feira à capital angolana, onde era aguardado com um aparato normalmente dedicado às personalidades estrangeiras mais respeitadas, sendo que a agenda oficial só esta manhã de quarta-feira, 25, teve início, o que terá dado tempo ao chefe da diplomacia do Kremlin para falar com a equipa da embaixada russa em Luanda sobre as alterações visíveis ocorridas nas até aqui bem lubrificadas e históricas relações entre os dois países.
Uma das indicações de que Luanda estaria a alterar o seu posicionamento de neutralidade estratégica face à invasão russa da Ucrânia, com uma aproximação às posições ocidentais, especialmente aos EUA, aconteceu quando João Lourenço disse que devia ser Moscovo a dar o primeiro passo para acabar com a guerra.
Isto num momento em que Angola deixava a estratégica abstenção na Assembleia-Geral da ONU nas votações de resoluções contrárias aos interesses russos, como foi a de Outubro de 2022, onde uma larga maioria dos membros condenaram a anexação das quatro províncias ucranianas por Moscovo, incluindo Angola, que em Março se tinha abstido numa resolução semelhante elaborada pelos EUA e aliados, condenando a invasão russa da Ucrânia.
Se a resposta russa tardava, ela chegou já na noite de terça-feira, quando o embaixador da Federação em Luanda, Vladimir Tararov, questionado pelos jornalistas, ainda no aeroporto de Luanda, disse que Moscovo já deu esse primeiro passo para acabar com a guerra quando em Março do ano passado chegou a ter assinado um memorando de entendimento para acabar com as hostilidades com Kiev e estava empenhado nas negociações com a Ucrânia.
Mas o diplomata lembrou que, depois, por pressão do ocidente, especialmente EUA e Reino Unido, as autoridades ucranianas voltaram atrás, interromperam as negociações, e depois aprovaram mesmo legislação a ilegalizar qualquer tipo de negociações com a Federação Russa, ao mesmo tempo que o Presidente ucraniano tem garantido que não existe qualquer possibilidade de uma solução negociada que não seja a Rússia retirar de todos os territórios, incluindo a Crimeia, isto depois de as cinco regiões - Donetsk, Lugansk, Kherson, Zaporijia e Crimeia (2014) - terem votado em referendo pela integração.
Mas Tararov não deixou escapar a oportunidade de apostar na ideia de que as relações entre Luanda e Moscovo são de tal modo históricas e densas que o conflito no leste europeu não vai mudar as relações entre os dois países, sublinhando que cada país é soberano para fazer as suas escolhas, adiantando, no entanto, que gostaria que estas fossem a favor da Rússia.
Mas também o embaixador de Angola em Moscovo, Augusto da Silva Cunha, teceu considerações sobre as relações entre os dois países, considerando, segundo a imprensa, oportuna a vinda de Sergei Lavrov a Luanda porque isso contribuir para o reforço das relações bilaterais que estão meio adormecidas desde 2019, em grande medida por causa da pandemia Covid-19.
O diplomata angolano fez questão de dizer que não há animosidade entre Luanda e Moscovo, embora seja evidente que nem tudo está bem, pelo menos nas opções estratégicas, até porque uma das declarações que o Presidente João Lourenço fez sobre a aproximação aos EUA, que coincidiu com a Cimeira EUA-África, e com a forma como Washington se empenhou em cativar Luanda, foi que este era um passo ponderado na direcção escolhida estrategicamente por Angola.
Esse volte-face materializou-se nas declarações do Secretário de Estado, Anthony Blinken, em Dezembro, depois de ter reunido com o Chefe de Estado angolano, onde esteve também o Secretário da Defesa, Lloyd Austin, e já este mês de Janeiro, com uma conversa telefónica entre Lourenço e o chefe da diplomacia norte-americana, que, ainda em Washington, se mostrou satisfeito pelas indicações que tinha recebido do seu interlocutor.
Em cima da mesa está mesmo a possibilidade de Angola estar no tour que o Presidente Joe Biden vai fazer ao continente africano ainda este ano, em mais um esforço diplomático para recuperar o tempo perdido, as décadas perdidas pelos EUA, que foram aproveitados pela China e pela Rússia para ganharem influência que começa a ter abrangência pan-africana.
Mas, para já...
Sergei Lavrov sabe, certamente, da nova posição de Luanda na última votação na Assembleia das Nações Unidas, em Outubro de 2022, a condenar a anexação de quatro províncias ucranianas pela Rússia, onde votou a favor da resolução apresentada pela Albânia e pelos EUA, depois da abstenção na resolução de Março desse ano a condenar a invasão de 24 de Fevereiro.
E isso será obviamente um indicador para Lavrov dos novos ares que se respiram em Luanda, mas pior será quando o chefe da diplomacia do Kremlin for confrontado com a declaração de João Lourenço, aquando da Cimeira EUA-África, de Dezembro, em Washington, onde afirmou que a nova postura de Angola corresponde a passos responsáveis e reflectidos que correspondem a uma viragem na sua política externa para uma área mais próxima dos EUA. Mas isso quer dizer que será mais afastada de Moscovo?
A histórica ligação Luanda-Moscovo, forjada ao longo da luta de libertação através do partido que Governa Angola desde 1975, o MPLA, e depois, durante a guerra, que durou até 2002, onde a União Soviética, primeiro, até 1991, e depois a Rússia, mantiveram fortes relações políticas e económicas com Luanda, assente fortemente no fornecimento de armamento russo, que, é, ainda hoje, a base alargada das FAA, dificilmente será carta fora do baralho neste jogo onde dificilmente todos podem ganhar o mesmo mas é diplomaticamente possível garantir que ninguém perde totalmente, mesmo que em cima da mesa global esteja a ser forjada uma nova ordem mundial.
Há, no entanto, claramente novos ventos a soprar do ocidente (ver links em baixo nesta página). Depois de um encontro, em Washington, à margem da Cimeira EUA-África, entre João Lourenço e os Secretários de Estado, Anthony Blinken, e da Defesa, Lloyd Austin, o chefe da diplomacia de Washington veio a público dizer, com efusividade diplomática, que os EUA estavam muito satisfeitos com este novo olhar de Angola e a indicação do Presidente angolano de que Angola ia fazer "algumas compras" aos Estados Unidos.
Agora, com a chegada de Sergei Lavrov a Luanda, numa escala que não estava anunciada na sua deslocação a África, onde esteve nos últimos dois dias na África do Sul e no Reino de Eswatini, a única certeza que existe é que se a história garante que o encontro do velho diplomata russo com os membros do Executivo angolano, seja o MIREX Téte António, seja o próprio João Lourenço, será cordial, mas politicamente difícil.
É que, como foi publicado pelo Novo Jornal, na visita de Estado que João Lourenço fez a Moscovo, no início de Abril de 2019, então, o olhar de Luanda estava bastante pousado nas relações com a potência euro-asiática, tendo mesmo o Presidente angolano dito que pretendia ver a indústria de armamento russa abrir fábricas em Angola.
A diplomacia é, no essencial, a arte de estar bem com todos e ao mesmo tempo com todos adquirir vantagens ou, pelo menos, não criar adstringências desnecessárias, e o que Téte António deverá garantir ao seu homólogo russo é que Moscovo e Luanda não ganham nada em deixar de lado a cordialidade, mesmo que subjacente a isso esteja a decisão já tomada por João Lourenço de que Angola se reposicionou no concerto das Nações passando a inclinar-se estrategicamente mais para o lado dos Estados Unidos.
Esta posição de Angola é um ponto de viragem claro, embora essa realidade esteja longe de se verificar no continente, onde a Rússia parece estar a reganhar espaço de influência, especialmente na África Ocidental e Central, e também naquele que é, ainda, o país mais influente do continente, a África do Sul, a partir de onde chega Lavrov a Luanda, tendo, ali, apesar de alguns inexpressivos protestos da comunidade ucraniana, recebido um reforço de energia do Governo de Cyril Ramaphosa, que mantém de forma sólida a sua "amizade" com Moscovo.
Como, alias, o prova a organização dos exercícios navais previstos para Fevereiro, de 17 a 27 desse mês, com navios da Armadas sul-africana, chinesa e russa, tendo mesmo Moscovo anunciado que estes vão contar com a sua fragata Almirante Gorshkov, equipada com os novíssimos misseis hipersónicos Zircon, com capacidade de transporte de ogivas nucleares, e, segundo as chefias militares russas, sem "antidoto" em todo o mundo.
Alias, estes novos ares que sopram na política externa angolana serviram mesmo para uma crítica do líder da oposição, o presidente da UNITA, Adalberto Costa Júnior, numa entrevista recente a um jornal português, onde este diz que teve a informação da pate de um responsável russo "que as missões económicas e técnicas (da Rússia) em Angola terminaram há três anos porque o Governo angolano vendeu-se aos americanos".
Como, com este contexto novo em pano de fundo, vai correr esta visita de Lavrov a Luanda, só será possível perceber depois, mas aquele que é actualmente, aos 72 anos, um dos mais experientes diplomatas activos em todo o mundo, saberá que a única forma de garantir almoço e jantar é não hostilizar o anfitrião logo pela manhã.
Os recados de Mbabane
Durante a sua conferência de imprensa em Mbabane, Eswatini, Sergei Lavrov aproveitou para criticar as posições anti-Rússia de europeus e norte-americanos, face ao reforço das relações de Moscovo com vários países africanos, sublinhando que a Federação Russa apenas quer criar relações vantajosas para si e para os seus parceiros.
Acusou ainda de irracionais as declarações ocidentais que apontam o dedo a Moscovo por estar a "tomar territórios de influência francesa", como no Mali, Burquina Faso ou RCA, quando, na verdade, à Rússia só interesse desenvolver relações com todos os países do mundo.
E questionou esses mesmos países ocidentais que acusam a Rússia de estar a criar novas e mais profundas relações com países africanos através de estratégias arriscadas, notando que o continente africano é território de influência económica e política "seu", e depois a União Europeia e a NATO avançam para junto das fronteiras da Federação Russa e parece que aí já está tudo bem.
Lavrov mostrou-se pouco satisfeito com este tipo de posição de europeus e norte-americanos, e garantiu que Moscovo vai estar com a sua capacidade de ajudar, como é o caso dos fertilizantes e cereais que tanta falta fazem em África, sempre que os seus parceiros africanos assim o queiram, independentemente do que pensem no ocidente.