Sendo o Professor Mariano de formação Médica, a que se deve este desvio para uma área das Ciências Sociais?

A minha formação em Medicina não é apenas na perspectiva clínica, mas é na perspectiva mais ampla das Ciências Médicas. Sou especialista em Patologia, dentro das Ciências Médicas. Quer dizer, que eu sou cultor da especialidade em Medicina, cujo objectivo é descobrir as doenças, antes de esclarecê-las aos colegas das diversas especialidades que têm de se encarregar do tratamento delas.

Para além da patologia individual das pessoas, existe também a patologia das sociedades, a ocorrência de fenómenos anormais na sociedade. Isto já é do domínio das Ciências Sociais. Mas elas não deixam de inquietar quem é cultor das Ciências no âmbito mais global, quem, pelo menos, emula-se para ser, ou pretender ser, um polímata, isto é, um cultor de várias áreas do conhecimento. Dito isto, quero também dizer que não sou o primeiro cultor da Arte e das Ciências de Hipócrates, que se interessaram e escreveram sobre a História de Angola. O primeiro foi Américo Alberto de Barros e Assis Boavida, comummente conhecido como Dr. Américo Boavida que, em 1967, escreveu e publicou no Brasil o livro com o título "Angola, Cinco Séculos de Exploração Portuguesa". Este livro foi publicado antes da independência de Angola, com 133 páginas. Depois da independência, foi publicado pela União dos Escritores Angolanos, com 155 páginas. Relata sobretudo a exploração económica do nosso território e dos nossos antepassados por Portugal. Trata-se de uma visão económica da História de Angola.

Qual é o significado da sua abordagem sobre o passado angolano?

Eu sou o primeiro cidadão exclusivamente de nacionalidade e de pais angolanos a elaborar a História de Angola. Todos os que me antecederam ou têm várias nacionalidades, uma das quais é angolana ou os seus pais não são angolanos na sua totalidade, por isso é que eu sublinho que sou o primeiro a fazê-lo. O conhecimento da patologia individual de cada ser humano é uma realidade que me convida a entender a patologia de toda a sociedade. Esta entende-se conhecendo a História dessa sociedade. Foi sobre isso que me debrucei durante mais de duas décadas, pesquisando fontes em vários países do Mundo, em fundos arquivísticos, em várias bibliotecas, em vários museus, visitando vários monumentos, consultando mais de uma dezena de milhares de documentos, especialmente em Portugal. Só no Arquivo Histórico Ultramarino, consultei mais de cinco mil processos, de cuja selecção resulta agora esta narrativa sobre a História de Angola.

Depois de vinte anos de pesquisa, qual é o ponto fulcral da problemática histórica de Angola, que se assemelha à dos outros países africanos, não deixando de ter em conta que Angola é um país multi-étnico e multirracial?

Angola foi criada, foi concebida, foi inventada pelos portugueses. Nunca existiu no território que hoje delimita o nosso país algum lugar relevante com o nome de Angola. Angola resulta em primeira instância de uma lusitanização de um antropónimo de uma dinastia que existia num dos reinos do actual território do nosso país, cujo nome primeiro era Ngola. Nas populações do nosso país, tal como noutras culturas pelo mundo fora, as pessoas assumem nomes retirados de elementos da natureza, elementos vegetais, faunísticos.

Em Portugal, há pessoas que se chamam Carvalho, há pessoas que se chamam Sobreiro, elementos vegetais, Pinheiro, que é uma árvore. Elementos faunísticos: há quem se chame Palanca, etc., etc. O termo Ngola - e creio ser eu uma das poucas pessoas que se referem pela primeira vez a isso - é o termo que se concede a uma espécie piscícola das correntes fluviais, em muitas partes do mundo e também no nosso território, um peixe que genericamente se designa bagre. Cientificamente, esse peixe é da ordem dos Siluriformes.

Na parte Setentrional do nosso país, sobretudo na área kikongo, este peixe tem o nome de Ngola. É assim, que, em várias comunidades desta região, há muitas pessoas que se chamam Ngola. E Ngola resulta justamente da proeminência que este peixe tem sobre as outras espécies faunísticas das correntes fluviais. Com isto eu só quero dizer que não posso excluir que tenha havido alguma relação entre essa dinastia dos Ngola implantada no território atravessado pelo principal rio do nosso país, o Kwanza, e o bagre que provinha do mesmo rio.

Os portugueses constituíram a colónia de Angola, cerca de um século depois, mais concretamente 93 anos depois de terem estabelecido contacto com o Reino do Kongo. Durante esse século não houve nem intenção nem possibilidades de os portugueses constituírem uma colónia. Mas foi do conhecimento adquirido junto do Reino do Kongo, que eles, em 1575, enviaram uma expedição comandada pelo Paulo Dias de Novais, para vir fundar uma colónia a que eles em Portugal deram a designação de Angola.

Então, podemos concluir que Angola é uma criação colonial?

O termo Angola foi concebido e designado em Portugal, no tempo do Rei Dom Sebastião, o infeliz que perdeu a vida na batalha de Alcácer Quibir em 1578. A expedição de Paulo Dias de Novais era constituída por 600 pessoas de multi-ofícios, com muitos militares, com o objectivo específico de constituir a colónia. Eu incluo nesta obra a Carta de Doação de Dom Sebastião a Paulo Dias de Novais, para constituir a colónia de Angola. Esta Carta é praticamente a Certidão de Nascimento do nosso país, a certidão de nascimento de Angola. Eu incluo cópia do documento original.

O documento foi escrito no último quartel do século XVI, por isso eu mesmo não consegui escrutinar o sentido de algumas frases devido à caligrafia, à semântica, à ortografia.

Pedi a um especialista que fez a transcrição para português contemporâneo desse documento que é a certidão de nascimento de Angola.

Os portugueses começaram por fundar a colónia de Angola, a partir desta cidade de Luanda, que no fundo era uma feitoria de escravos, um local de degredados até ao primeiro quartel do século XX. Paulo Dias de Novais e os seus 600 expedicionários começaram a fundar a colónia de Angola com guerra de expansão contra as populações nativas em círculos concêntricos a partir de Luanda.

Nesse processo expansivo, o primeiro reino com o qual entraram em choque foi o Reino do Ndongo, governado por Ngola Kilwanji kya Samba. Ngola Kilwanji morreu de morte natural. Foi substituído pelo rei Ngola Mbandi que também morreu de morte natural e foi substituído pela Rainha Njinga Mbandi que por inerência do baptismo, também teve o nome de Ana de Sousa. Devido à resistência que os nossos antepassados impuseram à fundação da colónia de Angola, os portugueses não conseguiram em vários séculos, até à realização Conferência de Berlim sobre a divisão da África, de Novembro de 1884 até Fevereiro de 1885, em temos de ocupação efectiva, os portugueses não tinham sequer ultrapassado o Ambriz para cima, no Norte e, no Sul, não tinham sequer ultrapassado Caconda, na região de Benguela. Eles foram tendo presenças nucleares, celulares, através de mercadores, sertanejos, que se infiltravam na profundidade do território. Quando chegaram à Conferência de Berlim, o que os portugueses tinham ocupado era uma minúscula parcela de território.

(Leia esta entrevista na íntegra na edição semanal do Novo Jornal, que, face ao período excepcional que o País atravessa, é disponibilizada gratuitamente aos seus leitores)

A direcção do Novo Jornal deseja a todos uma boa leitura em http://leitor.novavaga.co.ao/