Numa intervenção centrada em África e dirigida aos parlamentares angolanos, Samia Suluhu Hassan, herdeira política de Julius Nyerere, apelou para a unidade dos africanos para a nova luta "que já não é pelo território", mas contra "a pobreza, insegurança, alterações climáticas" e por uma "África emancipada".
Citando Julius Nyerere, para quem "a união não nos tornará ricos, mas pode fazer que seja difícil para África e os seus povos serem desconsiderados e humilhados", a líder tanzaniana advertiu que, com África "dividida, não poderemos competir na arena global".
Manifestou-se a favor da livre circulação e cidadania africanas, afirmando: "Angola é uma das nossas casas, mostrando sintonia com a Presidente Netumbo Nandi-Ndaitwah, para quem "nenhum africano deveria precisar de visto para visitar a Namíbia".
Se o pensamento de Samia Hassan, por um lado, está alicerçado nos ideais dos precursores, pais das independências, por outro, está em linha com a nova geração pan-africanistas desta era do digital, que conjuga a luta pelo planeta com o combate pela dignidade dos povos.
As declarações da líder africana da Tanzânia e de outros da nova geração pan-africanista levam-me a revisitar as âncoras deixadas pelos libertadores, que cedo defenderam a integração como essencial para travar o neocolonialismo e outras formas de subjugação.
No País onde Nyerere, pai político de Samia Hassan, era o titio das crianças e dos jovens, Samora Machel, ao proclamar a Independência Nacional, coloca África como "grande base de apoio seguro" de Moçambique.
"Nesta terra libertada de África, a República Popular de Moçambique assume integralmente a dimensão internacionalista do combate pela libertação de África e da humanidade", assegura Machel, em Maputo, há quase 50 anos, no dia 25 de Junho de 1975.
Poucos meses depois de Machel, em Novembro desse mesmo ano, em Luanda, Agostinho Neto proclama a Independência de Angola e faz questão de ordenar essa proclamação: primeiro "perante a África" e depois o Mundo e a constituição do País em República Popular.
"País empenhado na luta anti-imperialista", assegura Neto, Angola "terá por aliados naturais os países africanos, os países socialistas e todas as forças progressistas do Mundo".
Ao ouvir Samia Hassan, revisitei também a entrevista que, em 1997, fizemos (eu e o meu colega João Carlos) ao Presidente Kenneth Kaunda, que ligava o desenvolvimento da sua Zâmbia ao da região Austral e do continente.
Na conversa, seis anos após deixar a liderança da Zâmbia, apesar de centrada no seu País, Kaunda falava de África. Dizia nós, os africanos, o nosso continente, a nossa região, falava de uma África de esperança e da sua organização, a OUA, antecessora da União Africana (UA).
Tal como Kaunda havia feito nessa entrevista para a revista África Hoje, a nova geração pan-africanista questiona-se sobre a natureza e as práticas do sistema multipartidário, que são, muitas vezes, obstáculos à paz, liberdade e estabilidade dos Estados e artifício para mascarar o endocolonialismo.
O vovô Kaunda, como era carinhosamente tratado na Pátria de Samora Machel, lembrou-nos que, em muitos países africanos, incluindo o seu, o multipartidarismo cria divisões políticas insanáveis, que desembocam em conflitos graves que provocam centenas ou milhares de mortos.
Multipartidarismo que dificilmente significa diferença ideológica ou programática, mas apenas de estilo. Muitas vezes, representa simplesmente busca do poder pelo poder para a obtenção de benefícios sociais, económico-financeiros para um indivíduo ou grupo regional ou sócio-cultural, ou para o enriquecimento fácil e ilícito da elite do poder.
Adepto das soluções africanas para os problemas africanos num continente onde "não há falta de cérebros", Kaunda dizia que alguns dos modelos importados criam muitas divisões e mortes, em que era necessário cultivar a unidade.
A nova geração pan-africanistas tem, na sua agenda prioritária, o combate ao neocolonialismo, sobretudo francês, englobado no colonialismo financeiro, que faz do franco CFA (criado por Paris como Franco das Colónias Francesas em África) ferramenta de exploração de 14 países das regiões central e ocidental de África.
Seguindo Amílcar Cabral, ideólogo, estratega e líder da luta do PAIGC pela libertação da Guiné-Bissau e Cabo Verde, a nova geração pan-africanista sabe que a independência exige soberania financeira e que, por isso, "a luta de libertação é uma revolução que não acaba no momento em que se iça a bandeira e se toca o hino nacional".
Sabe, igualmente, que, como disse em 1964 o fundador do Mali, Modibo Keita, "a nossa liberdade seria uma palavra vã se tivéssemos de depender financeiramente deste ou daquele país, e se, a todo o momento, tivéssemos de ser lembrados disso".
Sabe ainda que esse foi um dos combates de Mouammar El Kadhafi, da Líbia, autor do projecto de criação de uma moeda única africana, que teria como consequência imediata o fim do Franco CFA e proclamação da soberania financeira continental, pela integração, estabilidade, prosperidade e dignidade dos povos africanos.
"Queremos militares africanos para defender África. Queremos uma moeda única. Queremos um passaporte africano", anunciava Kadhafi, na cimeira de lançamento da UA, em Sirte, Líbia, em 1999.
Antes do líder líbio, o pai da Independência do Ghana, Kwame Nkrumah, expoente máximo da corrente pan-africanista do Grupo de Casablanca (pró-integração), já tinha defendido, no seu livro "A Luta de Classes em África", a necessidade premente da criação de um "exército panafricano".
Consciente de que, num continente muito cobiçado, não há soberania política sem forças armadas fortes, em Luanda, Samia Hassan também se pronunciou por uma cooperação estratégica em matéria de defesa.
A nova geração pan-africanista, porque quer ver África comandar o seu próprio destino, é crítica do funcionamento da União Africana. Defende a sua revitalização para melhor corresponder aos anseios de um continente onde mais de metade da sua população têm menos de 20 anos.
Critica a perigosa dualidade de critérios da UA que penaliza com suspensão os países dirigidos por juntas militares, saídas de golpes de Estado essencialmente contra o neocolonialismo, mas fecha os olhos a outros golpes de Estado, nomeadamente constitucionais, que instituem ditaduras assentes na opressão e na miséria dos povos.
Golpes constitucionais desencadeados por falsos democratas, escravos de "ordens superiores" externas, que criam esquadrões da morte dentro dos aparelhos repressivos do Estado para perseguir e assassinar adversários políticos e críticos do seu desempenho, bem como usam o lawfare para cancelar opositores e silenciar vozes livres.
A nova geração é tão crítica como os precursores, entre os quais Agostinho Neto, que em 1978, em Kartoum, capital do Sudão, na Cimeira da Organização continental, alertava que "África parece hoje um corpo inerte onde cada abutre vem debicar o seu pedaço".
Ou Kaunda, que, na entrevista atrás citada, indicava que África não tinha falta de "cérebros", ou seja, tinha gente com capacidade para levar o continente a bom porto e que o maior problema africano eram questões internas dos estados que afectavam a OUA.
Ou ainda Thomas Sankara, do Burkina Faso, que, em 1987, em Addis Abeba, na cimeira sobre a dívida externa africana, pedindo reformas na OUA, dizia ter "medo das reuniões da organização que se sucedem sempre da mesma forma, mas com cada vez menos interesse".
Sendo o mais importante instrumento para travar os apetites de recolonização ou outro tipo de dominação de África, a UA precisa de ser revitalizada, de se transformar numa real organização dos povos de África e sua Diáspora, atribuindo um maior protagonismo à sociedade civil, aos "cérebros africanos" de que falava Kaunda.
Precisa de deixar de ser um clube de chefes de Estado, de resumir a democracia à realização periódica de eleições e de caucionar fraudes políticas.
E devia adoptar como seu lema a expressão "não há democracia com fome", dita por Francisco, o Papa da esperança. Ou seja, interiorizar que sem dignidade humana só há opressão, tenha a máscara que tiver.

E, com isso, seguir Nelson Mandela, que, na Cimeira da OUA em Tunis, em 1994, sublinhava que não pode haver "obstáculos suficientemente grandes para nos impedir de promover um novo renascimento de África".