Numa nota divulgada na sua página oficial, João Lourenço, depois de uma resenha histórica sobre o longo processo negocial de Luanda, que envolveu os Presidente da RDC, Félix Tshisekedi, e do RUanda, Paul Kagame, exige ainda a saída do M23 das áreas ocupadas.
Na qualidade de mediador em nome da União Africana, o Chefe de Estado angolano, numa determinada acusação ao Ruanda de estar a invadir território soberano congolês, apela "à retirada imediata das Forças de Defesa do Ruanda do território congolês".
João Lourenço considera que a saída das forças de Kagame do leste da RDC é condição essencial para que se "criem urgentemente as condições para a estabilização da vida das populações, incluindo a normalização do funcionamento do aeroporto da cidade de Goma em condições de segurança".
Isso, porque considera fundamental, no processo de estabilização regional, o regresso dos membros do Mecanismo de Verificação Alargado Reforçado (MVAR) e do Mecanismo de Verificação Alargado da CIRGL, e para a entrada da ajuda humanitária a favor das populações deslocadas e refugiadas.
Ainda na mesma nota, Lourenço reafirma que "as discussões relativas à questão do M23, e de todos os outros grupos armados que actuam no território da RDC, devem ser urgentemente retomadas no âmbito do Processo de Nairobi", referindo-se ao outro pilar negocial, o Quénia e o seu Presidente, William Rutto, onde assentam os esforços internacionais e regionais para estabilizar os Grandes Lagos.
E pede aos dois países da linha da frente, a RDC e o Ruanda, para "respeitarem os compromissos assumidos ao abrigo do Processo de Luanda, permitindo que se criem as condições necessárias para a convocação de uma Cimeira Tripartida em Luanda, com carácter urgente, em data a ser comunicada oportunamente".
No mesmo ritmo, João Lourenço lembra que, no âmbito do diálogo de Luanda, Tshisekedi e Kagame concordaram em empenhar-se para o cessar-fogo e a neutralização das Forças Democráticas de Libertação do Ruanda (FDLR) - que o Ruanda acusa de estarem a desestabilizar o país a partir de território congolês - e a retirada das unidades militares ruandesas da RDC.
Enleva a ideia de que o Ruanda tem considerado sempre que o M23, que tem tomado em grande velocidade vastas áreas do leste das RDC próximas à fronteira com o Ruanda, é um problema interno congolês, e que esse seria lidado em Nairobi num contexto de reconciliação inter-congolesa.
Levando o Presidente angolano a relembrar agora que Uhuru Kenyatta, "o antigo Presidente da República do Quénia e Facilitador designado pela Comunidade da África Oriental (CAO), a 15 de Dezembro de 2024, em Luanda, Angola, comprometeu-se em acelerar com efeitos imediatos as consultas com o M23".
O reacender da fornalha
Esta mais recente fase da crise congo-ruandesa começou em Outubro do ano passado, quando os rebeldes do M23 romperam todos os compromissos conseguidos nas várias Cimeiras de Luanda, inclusive acordos de cessar-fogo repetidamente queimados pelos guerrilheiros, apesar do forte contingente militar enviado para a zona pelos países vizinhos...
Mais recentemente, já este mês de Janeiro, depois de terem tomado Masisi e Minova, localidades situadas nas duas vias de acesso a Goma, os rebeldes do Movimento 23 de Março, ou M23, estão a conseguir furar as últimas linhas defensivas das forças leais a Kinshasa.
Para enfatizar a preocupação que é uma tomada de assalto bem conseguida da cidade de Goma, com mais de 2,5 milhões de pessoas, a ONU, através do Alto Comissário para os Direitos Humanos, já veio lançar um alerta para a iminente catástrofe humanitária que esse avanço será.
Isto, porque o leste congolês, especialmente nos dois Kivu, Norte e Sul, e Ituri, é uma das regiões mais afectadas pelo fenómeno dos deslocados internos em fuga permanente à violência étnica e guerrilheira, com mais de 6 milhões de pessoas nessa condição.
E Goma cair nas mãos do M23, acelera ainda mais a crise humanitária. que já é gigantesca, fruto de três décadas de violência, com origem no genocídio de 1994, no Ruanda, complementada pela disputa dos seus vastos recursos naturais, será severamente agravada.
Além desse problema, a tomada de Goma deixa o Governo da RDC do Presidente Félix Tshisekedi, que já ameaçou por diversas vezes uma guerra com o Ruanda, o país vizinho que apoia este grupo rebelde, como as Nações Unidas provaram em 2022, em muito maus lençóis, podendo ser a chama que acende o rastilho ligado ao barril de pólvora que é toda a região dos Grandes Lagos.
Por se tratar de uma situação de enorme melindre, o Presidente angolano, João Lourenço, tem, em nome da União Africana, conduzido parte fundamental das negociações para a estabilização regional, incluindo diversas Cimeiras em Luanda.
Pela capital angolana, passaram, nos últimos cinco anos, todos os líderes regionais com ligações a esta crise RDC/Ruanda, incluindo, naturalmente os Presidentes Tshisekedi e o seu homólogo ruandês Paul Kagame, mas nada parece demover o M23 das suas conquistas e dos interesses que perseguem.
Apesar de, no quadro desses esforços, ter sido deslocado para esta região em brasa um contingente militar substancial para impor o fim das hostilidades, o M23, uma e outra vez, sempre furou os acordos de cessar-fogo conseguidos em Luanda por João Lourenço.
E agora, apesar dessa presença, são as Forças Armadas da RDC (FARDC) que procuram travar o avanço dos rebeldes mas, ao que tudo indica, sem sucesso porque, depois de, como o Novo Jornal noticiou qui e aqui, terem tomado Masisi e depois Minova (no Kivu Sul), estes tomaram Saké e Bambiro.
Estas duas localidades são de extrema importância estratégica porque estão em cima do nó rodoviário da N2, R529 e RP 1030, as três vias de acesso a Goma a partir do oeste do Lago Kivu, o que deixa os guerrilheiros apenas com cerca de 15 quilómetros da grande cidade que se situa na linha de fronteira com o Ruanda.
Com este avanço, os homens do M23 não apenas ganham uma situação de vantagem no confronto com uma eventual reacção musculada das FARDC, como já assumiram posições de controlo sobre as mais relevantes áreas mineiras da região, incluindo no Kivu Sul.
A partir de Genebra, o Alto Comissariado da ONU para os Direitos Humanos admite estar "muito preocupado" com este desenvolvimento, que, avisa Ravina Shamdasani, porta-voz desta agência das Nações Unidas, só este ano já provocou 400 mil desalojados.
Segundo os relatos de repórteres na região, a cidade de Goma está à beira do pânico generalizado porque as explosões e os tiroteios já se ouvem nos subúrbios enquanto das suas unidades hospitalares, muito depauperadas, são assoladas por vítimas dos confrontos, civis e militares.
Estes avanços do M23 foram reatados em 2021, depois de um longo interregno de quase uma década em que este grupo se refugiu na sombra, tendo voltado com grande capacidade ofensiva, bem armados e com forte apoio logístico, que é fornecido pelo Ruanda, segundo o Governo de Kinshasa e a ONU.
O histórico
Por detrás desse apoio está a exploração de minerais estratégicos valiosos (ver links em baixo), como o coltão ou o cobalto, que são reexportados pelo Ruanda como sendo provenientes do seu subsolo mas sem que se conheça a existência de reservas no lado ruandês destes recursos naturais.
Perante a ameaça séria de uma guerra entre a RDC de Felix Tshisekedi e o Ruanda de Paul Kagame, com dezenas de escaramuças fronteiriças a suportar essa possibilidade, o Presidente angolano encetou uma "batalha" diplomática para estabilizar a região.
Para isso contribui ainda o Quénia, no âmbito da Comunidade da África do Este (EAC), que, com Angola, tem servido de palco para sucessivas rondas negociais, algumas delas promissoras, como quando, em 2023, em Luanda, Paul Kagame se comprometeu em pugnar junto dos lideres do M23 para aceitarem depor as armas.
Tal nunca foi efectivamente concretizado, apesar de ao longo de 2024 terem sido definidos os ditames das tréguas que duraram meses e foram vigiadas e garantidas por um continente militar de interposição com milhares de militares oriundos de países como Angola, África do Sul, Quénia ou, entre outros, Uganda.
Porém, como tinha sido regular nos últimos meses de 2024, agora, em 2025, ainda o ano está a arrancar é já se começa a perceber que o M23 não vai dar descanso aos líderes dos esforços diplomáticos, onde está o Presidente João Lourenço.
O mapa das conquistas do M23 no Kivu Norte e no Kivu Sul segue os filões dos recursos naturais que são mais cobiçados pelas grandes indústrias globais, desde as comunicações (coltão) à aeronáutica (cobalto).
Com as vagas de assaltos do M23, Kinshasa ficou sem controlo de algumas das mais vastas áreas de exploração mineira, perdendo assim milhões USD para os garimpeiros ilegais que fazem estes recursos chegar ilegalmente aos mercados internacionais via Ruanda ou outras geografias.
Por detrás desta renovada ofensiva dos rebeldes está, seguramente, a fricção entre Tshisekedi e Kagame que, apesar dos esforços de intermediação de Lourenço, parece ter chegado a um ponto de ebulição devido à imparável chama dos interesses económicos no leste congolês.
Além das perdas económicas, estes avanços do M23 resultam ainda como uma poderosa dor de cabeça para as autoridades congoleses que se encontram já com uma severa crise humanitária entre mãos.
Isso, devido aos quase cinco milhões de pessoas que se encontram em campos de refugiados em vários locais, devido à violência - são mais de 100 os grupos de guerrilheiros, milícias e bandidos organizados na região - e com tendência de crescimento sem fim à vista.
Há relatos de que os combates entre as forças congolesas e os guerrilheiros fazem mais de 20 mil mortos anualmente, sem contar com os milhares de vítimas civis, que são a larga maioria.