Estávamos em 1975, Angola acabava de nascer como país independente e a Televisão Popular de Angola (TPA) dava os primeiros passos e com ela surgiram as imagens iniciais da longa guerra que só veria o fim muitos anos depois. Foi nesse momento que Óscar Gil, na altura com 22 anos e sem nenhuma experiência nestes "filmes", se viu com uma câmara Arriflex 16 mm ao ombro e a caminho dos campos de batalha da Frente Norte.

A vida profissional daquele que foi um dos grandes repórteres das guerras angolanas dava um filme, seria mesmo uma longa-metragem repleta de acção, mas não foi preciso escrever o guião porque a vida encarregou-se de lhe apontar os palcos bem reais de algumas das batalhas épicas que marcaram a alvorada de Angola como país independente.

Óscar Gil Pereira estava incorporado no exército colonial português quando se deu a revolução dos cravos em Portugal a 25 de Abril de 1974, acelerando o processo de libertação de Angola que culminou com a proclamação da independência a 11 de Novembro de 1975.

Nesse período, Óscar Gil integrou um grupo alargado de militares que foi à Fortaleza de São Miguel entregar a farda do exército português passando de imediato para uma das células do Movimento Popular de Libertação de Angola (MPLA) em Luanda.

A capital do país estava em polvorosa. Tinham sido assinados os Acordos de Alvor entre o MPLA, a UNITA e a FNLA, a que se sucederam os históricos combates entre os movimentos libertadores, que terminaram com a FNLA e a UNITA expulsas de Luanda pelo MPLA e a proclamação da Independência por Agostinho Neto, a 11 de Novembro.

Mas antes foi preciso estancar as invasões sul-africana, pelo Sul, e zairense, pelo Norte.

Estes episódios estão consolidados na História de Angola, mas por entre essas páginas que sustentaram o nascimento do país, moviam-se homens, com as mais diversas funções e, quase sempre, longe das atenções da pena dos historiadores.

Missões, como, por exemplo, colocar em funcionamento aquela que hoje é a Televisão Pública de Angola e que, à época, era a Televisão Popular de Angola, mas sempre, e até hoje, TPA.

Era muito pouco o que o jovem Óscar Gil sabia de política, muito menos de tácticas militares, e quase nada de câmaras de filmar. Mas os tempos eram de desenrasque e, depois de um curto estágio na Alemanha, na VDR, o quase repórter viu-se de Arriflex 16 mm ao ombro, com o seu camarada Artur Neves encarregue do som, a caminho da Frente Norte.

Iria literalmente aprender com a experiência... e com os sustos da guerra. Recorrendo à coragem e ao medo, criou o "tripé" onde assentou o seu olhar para os campos de batalha que lhe proporcionaram o feito de ter sido o primeiro repórter, em conjunto com outros, a recolher imagens da guerra angolana do pós-independência.

A dupla Óscar Gil e Artur Neves integrou o grupo da Frente Norte, maioritariamente constituído por ex-comandos portugueses, cuja missão era abrir caminho à 9ª Brigada de infantaria que, atrás, ia consolidando posições à medida que as forças da FNLA, apoiadas pelas forças zairenses de Mobutu e mercenários, eram empurradas para a fronteira norte.

De lembrar que entre os pioneiros nestas andanças estiveram também, como faz questão de sublinhar Óscar Gil, os irmãos Henriques, Carlos Henriques e Victor Henriques, cujo trabalho de cobertura da guerra se estendia pela Frente Sul.

Óscar Gil, em conversa com o Novo Jornal Online, não esconde que, naqueles dias iniciais, "se tivesse conseguido", não era ele que ali estava. "Mas alguém tinha de o fazer" e, ele com a sua Arriflex 16 mm e Artur Neves, encarregue do som captado no seu gravador Nagra, registaram os combates iniciais e também decisivos da expulsão dos invasores vindos do norte.

Naquela altura, pelo sul invadiam os sul-africanos do apartheid, com quem, mais tarde, uns anos depois, também teria encontros... Mas, por enquanto, era na Frente Norte que focava a sua lente, por vezes com a mão trémula, porque da mesma forma que admite a coragem, também não esconde que teve medo.

"Foram muitas as vezes que me ocorreu estar a viver os últimos segundos da minha vida", conta, sublinhando aquele que foi o seu "baptismo de fogo" com o "som aterrador" das Katyusha, ou "órgãos de Estaline" a flagelar o inimigo, que, "para alguém sem qualquer experiência semelhante para comparar", foi, admite Óscar Gil, "puro terror".

Mas depois, acrescenta com um sorriso ligeiramente irónico na cara, apesar de se tratar de um dos momentos mais dramáticos dos anos de chumbo que passou na linha da frente, "a adrenalina acaba por tomar conta de nós".

"A partir de certa altura, em vez do já gasto Ford Escort da TPA com que nos fazíamos transportar, íamos mesmo em cima dos tanques... o medo não desapareceu, mas aprendia-se a viver com ele", descreve.

As grandes batalhas

Na lente de Óscar Gil e na fita magnética do gravador de Artur Neves ficaram registados alguns dos momentos mais intensos da guerras angolanas do pós-independência, como, entre alguns exemplos, a célebre Batalha de Kifangondo, a norte de Luanda, Cacuaco, em 1975, a detenção, em 1978, dos mercenários ao serviço da FNLA e do exército de Mobutu, na província do Zaire, alguns deles posteriormente julgados e condenados à morte em Luanda, ou as primeiras imagens colhidas logo após o "grande massacre de Cassinga", perpetrado pelo exército sul-africano num campo de refugiados namibianos, a 4 de Maio de 1978.

"O que vi em Cassinga marcou-me profundamente. Fui o primeiro a chegar ao local após o ataque dos sul-africanos e colhi as primeiras imagens daquele horror, mas, ao mesmo tempo, tive a sensação de que estávamos a ser muito úteis porque acabámos por obter as provas das atrocidades cometidas pelos invasores", nota ainda Óscar Gil nesta conversa com o Novo Jornal Online.

É nesta altura que sucede uma alteração importante na forma como o repórter trabalha no terreno: as velhas câmaras de película de 16 milímetros são substituídas pelo vídeo, o que permitia fazer chegar as imagens a Luanda com mais facilidade, para alimentar alguns dos programas igualmente históricos, como o "Ponto de Situação", que levava ao público informação actualizada das frentes de guerra.

A conversa com Óscar Gil decorre no seu estúdio, na baixa de Luanda, na Mutamba, com dezenas de câmaras de filmar, de fotografar, tripés, fotómetros e luzes, que marcam cada ano da sua longa vida desde o repórter tenro ao maduro realizador de documentários premiados.

Onde estão estas imagens históricas?

Aqui chegados, uma pergunta se impõe: onde estão essas imagens, que registaram a alvorada de Angola como país independente? Onde estão as imagens que provam o nascer tormentoso de Angola? O repórter responde em claro tom de lamento: "Acho que ninguém sabe...".

Isto porque as imagens colhidas em fita magnética e o som que as acompanhava eram expedidas directamente para Cuba, antes de passar por Luanda e pela TPA. Porque, crê o repórter, "elas - as imagens - eram tratadas como material sensível já que, num tempo de guerra acesa e combates permanentes, poderiam, se fossem parar a mãos estranhas, mostrar locais de posicionamento das forças em combate e assim ajudar o inimigo".

Compreendendo esse cuidado estratégico, Óscar Gil admite que já é mais difícil perceber como é que imagens que são "parte integral da história de Angola, colhidas por um angolano, que são essenciais para os vindouros perceberem o que somos como país através daquilo que vivemos, continuam em parte incerta e inacessíveis".

O hoje cineasta consagrado não entende ainda o porquê de não estar em curso um projecto que vise "recuperar essas imagens", se não as originais, pelo menos cópias digitalizadas para ficarem nos arquivos do país, lamentando também que algumas destas mesmas imagens tenham, depois, aparecido em filmes produzidos no estrangeiro, como em "Havemos de voltar", de Pagano.

"Nós sabemos muito bem que imagens fazemos e que não era possível terem sido feitas por outra pessoa. Ora, algumas dessas imagens não podiam ter sido feitas por mais ninguém porque eu era o único repórter no local e a única câmara de filmar no local era a minha", atira.

O repórter saiu ileso de todos os palcos de guerra, mas o guião da sua vida trocou-lhe as voltas quando, em Outubro de 1982, teve de se deslocar a Portugal para apoiar um dos filhos, transferido para Lisboa com malária.

"Fui atropelado em Portugal. Não sei se foi por estar habituado a andar no mato...", diz com humor que a distância temporal permite, mas o acidente foi grave e atirou o repórter para uma cama de hospital, onde esteve internado quatro meses.

"E aí conheço a ingratidão. Na altura era delegado da TPA, mas não tive apoio de ninguém. Nem do Estado angolano", confidencia, acrescentando que se viu em Portugal "sem dinheiro e sem apoio".

"Fui obrigado a arranjar trabalho. Foi quando conheci o Nicolau Breyner e passei da reportagem para a ficção. Fui o cameraman da primeira telenovela portuguesa, a "Vila Faia`", o que abre uma janela para a possibilidade de as amarguras por vezes acenderem um holofote para mostrar novos caminhos nas "guerras" da vida.

Durante sete anos trabalhou na Nicolau Breyner Produções (NBP), deixando definitivamente para trás os cenários de guerra e dedicando-se à ficção. A vida, como o cinema, não é estática, e, em 1989, dá-se nova mudança de cena: Óscar Gil passa para o cinema documental.

"Aprendi muito. Com o realizador português Carlos Brandão Lucas (e a Marina, grande produtora), fiz o "Gente Remota", "A viagem ao maravilhoso..." Mas trabalhei com muitos outros: o Walter Avancini, o Régis Cardoso, o Nuno Teixeira... Muitos, muitos".

Ganhou mundo e regressou a Angola, em 1999, 18 anos volvidos sobre a sua última grande reportagem de guerra "O Fogo está aceso", para criar a sua própria produtora. Das mini-séries de educação para a cidadania, para a sexualidade, ou para a não-descriminação, até à direcção de actores, muito tem sido feito por Óscar Gil, "mesmo sem apoios ou sem uma política de cinema".

O reconhecimento do país chegou em forma de galardão, em 2003, ano em que recebeu o Prémio Nacional de Cultura.

"Tive sorte", remata o velho repórter de guerra, hoje reconhecido realizador, em jeito de final feliz, como nas muitas telenovelas em que trabalhou...mas no fade out desta conversa com o Novo Jornal Online, não deixou de lembrar que ainda há muitos metros de fita magnética com imagens únicas da história de Angola em arquivos de países estrangeiros e que era muito importante recuperar para a construção do todo colectivo nacional.