Há largos meses que nalguns canais nas redes sociais e nos media ocidentais, especialmente após a intentona conduzida pelo ex-líder do Grupo Wagner, Evgeny Prigozhin, em Junho de 2023, apontam para a existência de divisões no Kremlin sobre a forma como está a lidar com as "provocações" ocidentais no contexto da guerra na Ucrânia.

Até agora, com escassas excepções, pela Rússia falava o próprio Vladimir Putin, o seu porta-voz, Dmitri Peskov, ou o ministro dos Negócios Estrangeiros, Sergei Lavrov... e, mesmo que as espessas paredes do Kremlin escondessem alguma fricção, a Federação falava a uma só voz...

Por detrás destas notícias alicerçadas em fontes anónimas sobre o surgimento de uma linha que exige uma resposta russa mais dura face aos desafios ocidentais, estão questões bem conhecidas.

Sejam as armas ocidentais, operadas por militares ocidentais, como os EUA ameaçam fazer com os estratégicos mísseis Tomahawk (ver aqui), e já tinha acontecido com os ATACMS ou, entre outros, os HIMARS... que continuam a ser disparadas sobre a Rússia, ou a forma como a Europa ameaça entregar a Kiev os quase 250 mil milhões USD russos congelados nos bancos europeus...

Perante tudo isto, Vladimir Putin manteve inalterado o seu perfil de aparente tranquilidade e calma, que foi reforçado com o encontro com Donald Trump, em Agosto último, no Alasca, apostando tudo numa aproximação aos EUA enquanto mantinha, e mantém, um evidente desdém para com os países europeus da NATO e da União Europeia.

Tanto Putin como as suas "vozes" em Moscovo foram, ao longo destes quatro anos de guerra na Ucrânia, apontando como perigosas escaladas as novas armas europeias e norte-americanas que chegavam ao campo de batalha - exemplos disso foram ainda os sofisticados blindados alemães Leopard II ou os americanos M1 Abrams - mas sem que do lado russo tenha havido uma resposta severa.

À medida que os meses foram passando no campo de batalha do leste europeu, e novas armas ocidentais foram chegando a Kiev para usar contra os russos, Putin foi, efectivamente, mostrando algum mal estar, mas sem avançar para uma resposta que, ao que tudo indica, era e é exigida pela linha mais dura no Kremlin, apostando antes numa aproximação a Donald Trump ao mesmo tempo que ignorava e ignora os aliados europeus de Kiev.

Até agora, porque, depois de o Presidente norte-americano ter vindo a público admitir que está quase a permitir o envio dos estratégicos e potencialmente nucleares mísseis Tomahawk, com alcance de 2400 kms, pondo sob risco todas as grandes cidades russas, não apenas os canais nas redes sociais voltaram a fervilhar, como no seio da nomenclatura kremliana, na perspectiva de que Moscovo está a mostrar, como foi sugerido num podcast pró-russo, "fragilidades perigosas".

E esta visão parece estar mesmo a fazer caminho dentro do Kremlin, porque o vice-ministro dos Negócios Estrangeiros, Sergey Ryabkov, um velho peso-pesado da diplomacia russa e próximo ao seu chefe directo, Sergei Lavrov, esta quarta-feira, 08, largou uma "granada" diplomática sobre as relações entre Moscovo e Washington.

Disse Ryabkov que o impulso dado à reaproximação entre EUA e a Federação Russa com o encontro Trump/Putin no Alasca está, depois de as relações terem sido totalmentte cortadas pelo anterior Presidente, Joe Biden, no essencial, extinto.

E este desfecho surgiu especialmente depois da questão dos mísseis Tomahawk, que é, sem dúvida, a linha vermelha mais carregada a ser transposta pelos EUA, ter sido exponenciada pelas palavras desafiantes de Donald Trump, ao admitir fazê-los chegar a Kiev, mesmo que sob algumas condições.

É que bem fresco na memória dos russos está a ameaça do Presidente ucraniano, Volodymyr Zelensky, de "apagar" Moscovo se os seus aliados ocidentais lhe dessem as armas para atingir a capital russa, o que é enfatizado pelo facto de, mesmo apenas com drones, a Ucrânia estar persistentemente a tentar atingir o Kremlin.

Mas as palavras de Sergey Ryabkov ecoam ainda mais pelo vale de todos os receios de uma escalada catastrófica entre as duas maiores potências nucleares do mundo porque os Tomahawk são misseis de cruzeiro, com, apesar de antigo, da década de 1980, com eficácia superior a atingir alvos predefinidos e com ogiva cambiável entre explosivos convencionais e nucleares.

E se há um elemento que não se diluiu com o fim da Guerra Fria foi o medo mútuo de um ataque surpresa de decapitação do regime, seja em Moscovo ou em Washington, e se nos radares russos surgir um destes projectéis a voar em direcção à capital, no Kremlin não há forma de saber se está equipado com uma ogiva convencional ou nuclear.

Esta a razão cimeira para as alegadas adstringências no seio do Kremlin, onde, pelo menos aparentemente, emerge uma linha mais dura a exigir que Putin endureça as respostas de Moscovo aos crescentes desafios e ameaças norte-americanas, como a questão das sanções que estão sempre em cima da mesa.

E quando as redes sociais, deste os podcasts no YouTube aos canais dirigidos no Telegram ou no X, fervilham de discussão sobre este tópico, em Moscovo, Putin parece estar a ficar irritado com tanto alvoroço.

E daí resultou terem saído a público não apenas o seu porta-voz oficial, Dmitri Peskov, negando qualquer desalinhamento na posição oficial russa, como um dos principais conselheiros do chefe do Kremlin, Yury Ushakov, veio desmentir qualquer desvitalização do processo de reaproximação entre EUA e Rússia impulsionado pelo encontro no Alasca.

"Continuamos a trabalhar com os americanos na base do que ficou acordado pelos dois Presidentes no Alasca", disse Ushakov, citado pela TASS, acrescentando ao canal oficial russo Russia-1 que Moscovo e Washington mantém contactos regulares com base nos pressupostos de Anchorage, o local do encontro Putin/Trump.

Porém, Yury Ushakov admitiu nestas declarações os media russos oficiais que o encontro de Agosto entre os dois Presidentes no Alasca deixou furiosos muitos lideres europeus e o regime ucraniano de Volodymyr Zelensky, que apontou como "aqueles que não querem ver a crise ucraniana resolvida por meios pacíficos".

E também, como avança a russa RT, é verdade que tanto o Kremlin como o Ministério dos Negócios Estrangeiros já admitiram que está a acontecer uma "pausa" no diálogo entre russos e norte-americanos no que diz respeito ao tema do conflito na Ucrânia, o que, em traços largos, corresponde ao que defende Sergei Ryabkov quando diz que "o forte impulso" de Anchorage para resolver esse problema está "globalmente extinto" pela acção europeia.

Também Dmitri Peskov já veio admitir que no quer toca às negociações sobre a questão ucraniana não está a acontecer qualquer desenvolvimento, o que, na realidade, corresponde ao que Donald Trump pensa, e já o disse, o que pode significar que a ameaça de envio dos Tomahawk para Kiev pode ser uma forma de pressão sobre Putin para ceder nalgumas das suas condições que estão em cima da mesa.

Alguns analistas entendem, porém, que tanto em Washington, com a ameaça de Trump com os Tomahawak, como em Moscovo, aludindo à existência de uma linha dura que pressiona Putin para aumentar a dureza das respostas aos EUA e aos Europeus, no que pode, no limite, levar a um conflito de proporções inimagináveis, significa que Putin e Trump estão a jogar "póquer" e ambos estão a usar o "bluff" como estratégia.

O problema é se apenas Trump estiver a jogar "póquer" enquanto Putin está a jogar "xadrez" e ambos acham que estão a jogar o mesmo jogo, porque, como a isso se refere Jeffrey Sachs, reconhecido economista norte-americano da Universidade de Columbia, profundo conhecedor da política nos EUA e na Rússia, onde foi conselheiro do Kremlin na década de 1990, "Trump não sabe jogar xadrez" e Putin vê o póquer como um jogo demasiado simples e imediatista.

As consequências para essa possibilidade, de estarem a jogar jogos diferentes, é que no xadrez pensa-se à distância e no poquér requerem-se resultados imediatos...

E quando ambos os jogadores têm o botão do Armagedão ao lado, uma jogada em falso, ou mal interpretada, pode significar o fim da Humanidade.