De entre as vozes inspiradoras, destacarei três icónicas, que poderemos considerar como verdadeiras divas da música popular urbana de Luanda.
Todas elas nascidas na primeira metade da década de 30/XX, juntas e separadas tiveram, sobretudo a partir do advento da rádio angolana, nos anos 50/XX e nas décadas seguintes, percursos que são legados sócio-histórico-culturais de valor inestimável.
É a Belita Palma, Lourdes Van-Dunem e Sara Chaves a que me refiro.
A voz foi provavelmente o primeiro instrumento do Jazz. E pela via das canções de trabalho (work songs), espirituais negros, e sobretudo do Blues praticou a quase igualdade dos sexos.
Este "quase" não é acidental.
Os Blues, que o notável especialista, dramaturgo, crítico de Jazz, autor muito diferenciado e com obra colossal, ensaísta notável que publicou textos seminais, de grande originalidade, sobre a experiência afro-americana, Le Roi Jones ( 1934- 2014), aliás Amiri Baraka, quando se converteu ao Islamismo, considera a forma maior da música afro-americana, da qual o Jazz não é senão a "tradução instrumental e o prolongamento estético", os Blues, que nunca se deve traduzir por "azuais", cantados no feminino surgem depois do canto do Blues masculino.
Um olhar atento sobre os testemunhos da vida dos Negros nos "States", permite concluir: os tempos mais recônditos, mais arcaicos não revelaram nenhuma voz feminina, não surgiu uma cantora.
No chamado "Folk Blues" há apenas, citando os fundamentais, "Blind Lemon Jefferson, Leadbelly e Robert Johnson. No mundo rural do Folk Blues não existiram mulheres cantoras.
Quando, em finais do século XIX, os Negros começaram a abandonar as plantações do Sul para procurar melhores condições de vida nas cidades industriais do Norte, apenas levavam consigo tristes recordações e os textos dos Blues rurais, marcados por uma situação de penúria instrumental, cantados tantas vezes sem acompanhamento, de acentuação do carácter falado, da descrição, do segredo e da quase clandestinidade- um verdadeiro "monólogo de subjectividade", como caracterizam certos autores, designadamente Paul Oliver e A.B. Spellman.
Com a chegada dos Blues ao Norte dos States, no início dos anos 1920 surge a grande época do chamado "Blues Clássico", onde se destacam duas mulheres notáveis: Ma Rainey, a "Mãe" dos Blues, e a "Imperatriz", Bessie Smith. Essas Senhoras cantavam com uma voz potente , ampla e profunda.
O clima musical foi mudando, como [ quase] tudo nesta vida, e os Blues foram dando lugar ao fenómeno "Canção / Song", que começa a impor-se.
Ethel Waters, Ivy Anderson e Mildred Bailey tornam-se as principais referências do género "Song", que alcançaram enorme e merecido sucesso.
Vale a pena destacar a opinião de Duke Ellington, um dos músicos negros mais prestigiados, um compositor genial, um "band leader" respeitadíssimo, teve na sua orquestra a cantora Ivy Anderson, durante dez anos, de 1932 a 1942. E definiu-a como " a melhor vocalista" com quem tinha trabalhado!
A linha de orientação "Song" foi muito influenciada pela arte da "balada", canção de andamento lento, com um carácter eminentemente romântico, sensual, intimista, ainda hoje constitui uma base importante do reportório dos Jazzmen.
A sofisticação do Jazz Ballad
Existem vários casos de músicos muito criativos e originais, que gravaram trabalhos completos dedicados à arte da balada, do italiano "balare". É o caso do genial saxofonista John Coltrane que gravou um disco magnífico sobre baladas, o inesquecível "Ballads". Por outro lado, o pianista McCoy Tyner, um dos ícones do século XX, deixou-nos um disco intitulado "Nights of Ballads and Blues", absolutamente obrigatório.
Mas, é necessário e justo sublinhar que a linha de orientação " Song/canção" beneficiou sobremaneira das melodias dos geniais compositores, que integram o chamado " Great American Songbook", os inesquecíveis Cole Porter, Jerome Kern Irving Berlin e ...os irmãos Gershwin- George e Ira.
Neste sentido, é importante destacar: a cantora Ella Fitzgerald desenvolveu um sentido muito profundo da arte da balada. E foi uma das grandes vozes do jazz clássico/ moderno. The Complete Ella Fitzgerald SongBooks, em que canta os grandes mestres da composição americana é uma obra da música mundial, ultrapassando largamente as fronteiras do Jazz.
Não se consegue falar, mesmo de forma breve, da poética do Jazz cantado sem mencionar Billie Holiday ( 1915-1959). Teve uma vida curta, atormentada, movimentada e trágica, marcada pela droga, pela música, pela solidão, e por uma continuada peregrinação por hospitais, reformatórios, prisões.
Billie não cantou nenhuma canção, não interpretou; criou canções
Na sua obra, recentemente publicada, em 2024,"O livro do Jazz- de Nova Orleans ao século XXI", o grande especialista alemão Joachim-Ernst Berendt arruma de forma notável as "divisões" entre as linhas "Blues" e "Song", que não são compartimentos estanques, dando a arte de Billie Holiday como modelo: " Em 1935, para dar apenas um exemplo, Billie gravou com Teddy Wilson ( pianista) uma canção tão banal quanto "What a Litle Moonlight Can Do" e, com ela, conseguiu produzir uma obra de arte do Jazz digna de valor. Billie cantou blues apenas esporadicamente. Mas do seu modo de frasear e a sua concepção davam a muitas das suas interpretações uma atmosfera de blues".
Billie viveu com o calor da vida, com ternura, ironia, espontaneidade, sempre, de qualquer modo, com uma sede imensa de viver e amar, mesmo nos momentos mais sombrios.
Hoje, e à medida que o jazz instrumental reforça a presença masculina no Jazz; no que toca à voz, o palmarés é, certamente, muito menos brilhante, no tocante aos homens. As Senhoras ocupam o trono da voz.
Assunto e pistas para a próxima viagem ao fim da noite, enquanto aguardo, com grande expectativa por Dee Alexander, de Chicago, uma cantora de Jazz de corpo inteiro, aqui na minha Luanda, para um Tributo à presença feminina no Jazz. Em Março.