Elísio de Figueiredo, que viria a ser o nosso primeiro representante permanente junto das Nações Unidas, foi o portador da missiva, entregue ao então secretário-geral, Kurt Waldheim, a 29 de Abril de 1976. Naquela altura, e fruto da retirada das tropas do regime do apartheid, a 27 de Março de 1976, Angola vivia, no Todo Nacional, a consolidação e o rescaldo da desbalcanização, de que tive o privilégio de ser testemunha presencial e ocular em Serpa Pinto/Menongue. Acrescenta-se que, em sede do Subcomité para África do Senado dos EUA, se discutiam os contornos da emenda Clark, assim designada em homenagem a quem a idealizou e conceptualizou: o senador Dick Clark, que em Agosto de 1975 visitou Angola e interagiu em Silva Porto/Bié, Ambriz e Luanda com Jonas Savimbi, Holden Roberto e Agostinho Neto, respectivamente. Na sua obra Iowa and the World: Memoirs of Senator Dick Clark (2017), Clark retrata a génese da emenda e a sua viagem a Angola. A contragosto da administração Ford e, particularmente, de Henry Kissinger, a emenda Clark foi promulgada a 30 de Junho de 1976 e vigorou até à ascensão ao poder de Ronald Reagan, em 1985. Enquanto vigorou, o Governo norte-americano esteve proibido de financiar secretamente apoio militar para qualquer dos movimentos de libertação nacional em Angola. Foi neste contexto que, a 23 de Junho de 1976, o Conselho de Segurança da ONU apreciou o pedido de admissão de Angola na ONU, que acabou por ser bloqueado por obra e graça do veto dos EUA. Na verdade, a linha de rumo que regeu os EUA no debate sobre a admissão enquadrou-se no espírito da Guerra-Fria, durante a qual, como diria Anatoly Dobrynin, Angola se tornou no cockpit das ambições internacionais da época. No que concerne a Angola, a ONU revelou-se mais um teatro de operações da Guerra-Fria e das divergências sino-soviéticas daquela era. Os EUA, em articulação com alguns aliados tradicionais e outros de conveniência, retardaram a admissão até à exaustão. Isso deveu-se ao facto de, nos dias/meses imediatamente subsequentes à independência do nosso País, os EUA e aliados - incluindo países africanos - terem alimentado, equivocadamente, a esperança de destronar o Governo de Angola, pela via da força militar. Essa perspectiva foi contemplada e concertada em Peking/Beijing, a 02 de Dezembro de 1975, durante as conversações sino-americanas, em que participaram Mao Tsé-Tung, Gerald Ford, Deng XiaoPing (na altura vice-primeiro-ministro da China) e Henry Kissinger. Curiosamente, a visão que alguns legisladores americanos tinham para a resolução do conflito pós-independência era diferente, se não mesmo distinta, da defendida pela administração Ford. Essa circunstância levou a que senadores influentes e opositores ferrenhos do apartheid, como Dick Clark e Joe Biden (actual presidente-eleito dos EUA), defendessem, ainda em 1976, a realização de diálogo directo entre Washington e Luanda. No âmbito das audições sobre Angola, ocorridas a 04 Fevereiro de 1976, no Subcomité para África do Senado, Joe Biden afirmou textualmente: ""just because the Soviets had a considerable influence on the MPLA is no reason why we have to go through the Soviet Union. It seems to me, to at least initiate attempts to have dialogs with the MPLA directly. I would hope we can do that. I am not at all confident that will occur, but it seems to me it would make sense if we did""(só porque os soviéticos tiveram uma considerável influência sobre o MPLA, não é razão para termos de passar pela União Soviética. Parece-me, pelo menos, termos de iniciar tentativas de dialogar directamente com o MPLA. Eu espero que possamos fazer isso. Não estou, de jeito nenhum, confiante que isso ocorra, mas parece-me que faria sentido se assim procedêssemos). Sucede que, tendo 1976 sido um ano de eleições presidenciais nos EUA, a voz da razão dos senadores Clark e Biden não teve o eco desejável.

A narrativa da administração Ford vis-à-vis a Angola manteve-se inalterável, designadamente na ONU. Perante esse quadro adverso, e com vista a deslaçar o nó do bloqueio, a diplomacia angolana da época fez o seu melhor na sensibilização e mobilização de Estados e organizações internacionais, cujo apoio e solidariedade se revelaram cruciais e encorajantes. De resto, a partir de 22 de Junho de 1976, Angola passou a participar nas reuniões do Grupo Africano das Nações Unidas, sob proposta do Secretariado Executivo da OUA junto da ONU, que teve o beneplácito de Kurt Waldheim. Assim é que, em Julho de 1976, sob a iniciativa audaciosa e desafiante do estadista conacry-guineense Sékou Touré, a XIII Cimeira da OUA, realizada nas Ilhas Maurícias, adoptou uma resolução, instando os países africanos a apoiarem massivamente o pedido de admissão. Esta deliberação impactante dos chefes de Estado africanos foi complementada e ganhou um novo fôlego em Agosto de 1976, com a participação de Agostinho Neto na V Cimeira dos Não-Alinhados, havida em Colombo-Sri Lanka. Os resultados da Cimeira - na qual Neto se fez acompanhar do então Ministro das Relações Exteriores, José Eduardo dos Santos, e do embaixador itinerante Pascoal Luvualu - não podiam ser melhores: foi adoptada uma resolução, apelando aos Estados-Membros da ONU e dos Não-Alinhados para apoiarem colectivamente a admissão de Angola, sendo que o veto de Junho de 1976 foi considerado contrário ao espírito da Carta e do princípio da universalidade das Nações Unidas. À margem da Cimeira de Colombo, Neto encontrou-se com Kurt Waldheim, tendo solicitado o seu magistério de influência para conduzir a bom porto o pedido de admissão de Angola nas Nações Unidas, cujo processo se via confrontado com entraves, que transpareciam ingerência nos assuntos internos do País soberano que Angola era, é e sempre será. É nesta circunstância que, devido à morosidade que se registava na formalização de Angola, como membro de pleno direito da ONU, o Governo angolano chegou a requerer o estatuto de observador. E fê-lo através de carta de José Eduardo dos Santos, de 21 de Setembro de 1976, endereçada a Kurt Waldheim. Foi portador da missiva Elísio de Figueiredo, que, com Pascoal Luvualu, eram os emissários predilectos de Neto para a execução de missões diplomáticas tanto junto do Secretariado-Geral, quanto do Conselho de Segurança das Nações Unidas. Felizmente, a opção estratégica do estatuto de observador não teve necessidade de ser concretizada. Os ventos e a dinâmica resultantes da Grande Estratégia diplomática de Neto, bem como das Cimeiras das Ilhas Maurícias e de Colombo, e da eleição de Jimmy Carter a 02 de Novembro de 1976, desconstruíram a estratégia de Kissinger relativamente a Angola. Uma estratégia à sua imagem: globalista e realpolitiker. Este cenário desconstrutivista propiciou que o pêndulo do Conselho de Segurança balançasse para o lado da descrispação e da racionalidade diplomática e jurídico-internacional, permitindo que o processo de admissão evolucionasse com rapidez. Neste contexto, a 22 de Novembro de 1976, o inevitável aconteceu. O Conselho de Segurança reapreciou o dossier e adoptou a resolução 397 (1976), com base na qual, a 01 de Dezembro de 1976, a XXXI Assembleia-Geral das Nações Unidas decidiu a favor da admissão de Angola, como 146.º Estado-Membro da ONU, nos termos da resolução 31/44. Este novo paradigma consolidou o salto qualitativo da diplomacia militante (1956-1975) para a diplomacia de Estado no pós-independência. Pela relevância histórico-diplomática desse feito notável, é justo e ponderoso reconhecer que, no longínquo ano de 1976, Agostinho Neto, José Eduardo dos Santos, Elísio de Figueiredo e Pascoal Luvualu foram os tecelões da admissão de Angola na ONU. Com as suas vozes, deram voz e corpo aos anseios legítimos de o Estado angolano integrar, por mérito próprio, o mundo da ONU.

*Embaixador