Tendo como pano de fundo a luta de libertação nacional em Angola, desde o seu início e expansão, a 4 de Fevereiro e 15 de Março de 1961, bem como a crise de Berlim e o fiasco da invasão da Baía dos Porcos em Cuba, Khrustchev e Kennedy reuniram-se para discutir questões internacionais candentes dessa altura.
Em decorrência de, nos idos anos de 1950 e 1960, Portugal colonial ter-se esmerado em descumprir o princípio jurídico-internacional da autodeterminação dos povos, bem como a resolução 1514 (1960) da ONU sobre a descolonização, Angola foi incluída na mesa de diálogo entre Kennedy e Khrustchev.
A impossibilidade prática de Portugal enveredar pela descolonização do
Ultramar era mais que óbvia: a par de considerar Angola terra de Portugal, Oliveira Salazar, à época presidente do Conselho de Ministros, asseverava que ""o princípio de autodeterminação é um princípio genial do caos político das sociedades humanas.""
Sem surpresas, Khrustchev enfatizou o apoio da União Soviética à luta de libertação nacional em Angola e algures, qualificando-a de guerra popular e
sagrada. O posicionamento de Khrustchev esteve alinhado com a Declaração do governo soviético sobre a situação em Angola, publicada no Pravda, a 27 de Maio de 1961. Ademais, também contribuíu para a narrativa de Khrustchev, o facto de Mário Pinto de Andrade, então presidente do MPLA, haver escrito ao líder soviético, solicitando apoio à luta de libertação, facto noticiado pelo
Pravda, a 11 de Março de 1961.
Kennedy, por seu turno, manifestou consonância com a verbalização do seu interlocutor a favor da descolonização dos povos africanos. Ou seja, Kennedy
convergiu com Khrustchev no apoio aos movimentos de libertação em África,
argumentando que os EUA - a contragosto de Portugal - e a União Soviética tinham votado a favor da resolução 1603 (XV) sobre a situação em Angola.

Adoptada pela Assembleia Geral da ONU, a 20 de Abril de 1961, essa resolução onusiana apelava ao governo português, no sentido de considerar a introdução de reformas, visando a implementação da Declaração sobre a Concessão da Independência aos Países e Povos Colonizados, a cujo espírito e letra Portugal fez ouvidos moucos até que, a 25 de Abril de 1974, ocorreu a Revolução dos Cravos.
Nos períodos pré e pós-independência, um dos marcos divisórios da détente
entre os EUA e a URSS foi, sem dúvida, a presença de tropas internacionalistas cubanas em Angola. Tanto que, a administração Carter chegou a vivenciar um impasse na operacionalização da comissão comercial conjunta EUA-URSS, devido ao envolvimento soviético em Angola.
De resto, na cimeira, uma vez mais realizada em Viena d"Áustria, a 17-18 de Junho de 1979, Jimmy Carter disse à Leonid Brejnev que as actividades militares cubanas em África impactavam negativamente nas relações entre os EUA e a URSS, sendo que Cuba actuava por procuração da União Soviética que a apoiava, financiava e equipava.
Brejnev retorquiu, refutando que a URSS estivesse a usar tropas cubanas para interferir em outras regiões, sustentando que, nos termos da Carta da ONU e do direito internacional, Cuba prestava assistência a pedido de governos legítimos, vítimas de agressão. Na ocasião, Brejnev não deixou de recordar Carter que,
durante a Guerra da Independência dos EUA, os efectivos do exército liderado pelo general George Washington [pai-fundador dos EUA] contaram com a solidariedade de tropas estrangeiras.
É evidente que a torrente discursiva dissonante, que permeou a cúpula entre Brejnev e Carter, transpareceu reminiscências das conversações acaloradas,
havidas em Moscovo, a 23 de Janeiro de 1976, entre Henry Kissinger e Andrei Gromyko, à época uma das personalidades mais poderosas da diplomacia soviética e mundial. Na altura, Kissinger reconheceu o apoio soviético ao MPLA, por um longo período, bem como as razões históricas subjacentes às actividades cubanas em Angola, mas salientou que os EUA não podiam aceitar que 10.000 tropas fossem enviadas como força expedicionária, transportadas em
aeronaves soviéticas com equipamento soviético.
Ao responder à Kissinger, Gromyko sintetizou o posicionamento soviético nos seguintes termos: não estamos autorizados a falar em nome do governo cubano,
mas o que sabemos é que Cuba está prestando assistência ao governo legítimo de
Angola, a seu pedido, e que a presença cubana em Angola era um assunto que dizia respeito à Cuba e ao Governo legítimo de Angola. Gromyko prosseguiu, dizendo à Kissinger que as relações soviético-americanas se sobreporiam às considerações e eventos momentâneos em Angola e que não havia razão para esses eventos adversarem as relações entre os EUA e a URSS.
E assim sucedeu. Vingaram os juízos de probabilidade positiva feitos por Gromyko. O dossier Angola não causou adversidades nas relações entre as duas
superpotências. Bem pelo contrário: a partir de meados da década de 1980,
Angola alcandorou-se ao patamar de contribuir, tanto para a normalização das relações EUA-URSS, quanto para pôr termo à Guerra Fria, na sequência da ascenção ao poder de Mikhail Gorbachev e a ele acoplada desideologização da política externa soviética.
Não é por acaso e vale a pena rememorar que, após Gorbachev ter, em 11 de Março de 1985, assumido as rédeas do poder, Ronald Reagan propôs-lhe, a 26 de Dezembro desse mesmo ano, a inclusão do dossier Angola na agenda das discussões entre ambos os países. A fixação do conflito angolano nas pautas negociais entre as superpotências traduziu-se, seguramente, num marco de referência na desconstrução do turbilhão que se desenrolava em Angola e no Sudoeste Africano.
Neste quadro, e sem desprimor para as anteriores cúpulas entre os líderes máximos dos EUA e da URSS, parece claro que a cimeira Reagan-Gorbachev realizada em Moscovo, de 29 de Maio a 1 de Junho de 1988, foi decisiva e instrumental para a assinatura dos Acordos de Paz de Nova Yorque, a 22 de Dezembro de 1988.
Acontece que, tendo evolucionado de fiéis para infiéis à tradição do contraproducente argumentário ideológico da Guerra Fria, Gorbachev e Reagan exercitaram, na cimeira de Moscovo, momentos de realpolitik no seu máximo esplendor. Sem olhar para o relógio, esgrimiram argumentos sobre Angola com um misto de historicidade, de respeito recíproco e de equilíbrio de interesses.
Nesse espírito, foi dada expressão e fôlego à afirmação de Gorbachev à Reagan - na cimeira de Washington, em 10 de Dezembro de 1987 - de que em Angola havia boas oportunidades para a resolução política do conflito. Essa antevisão de Gorbachev tornou-se realidade, fruto da interacção construtiva e da responsabilidade positiva dos EUA e da URSS, cujas lideranças decidiram pregar o prego no caixão dos dogmatismos ideológicos na resolução dos conflitos regionais.
*Embaixador de carreira