O semanário Novo jornal dedica um dossier ao estado do poder judicial em Angola e foi ouvir Luís Paulo, bastonário da Ordem dos Advogados (OAA), que faz um enquadramento técnico da renúncia de Exalgina Gambôa ao cargo de presidente do Tribunal de Contas, e também o jurista Almeida Lucas Chingala, que chama a atenção para os contornos para a imagem do País, gerados pela existência de processos judiciais que envolvem individualidades de realce das instituições de Justiça.

Em entrevista ao Novo Jornal, o bastonário da Ordem dos Advogados considera que, ao ter convidado Exalgina Gambôa a colocar o cargo à disposição, João Lourenço cumpriu com o seu dever, plasmado na Constituição da República de Angola, de promover e assegurar o funcionamento regular dos órgãos do Estado.

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Quais são as consequências da renúncia forçada da presidente do Tribunal de Contas?

Na nossa avaliação, do ponto de vista estritamente legal, não se devia e nem se pode falar de renúncia forçada e, nesta perspectiva, fica prejudicada a avaliação de hipotéticas consequências. Na verdade, os dados apontam objectivamente para denúncias de pretensas irregularidades e inobservância de normas legais por parte da então Presidente do Tribunal de Contas, denúncias essas, como todas as outras, devem ser inquiridas pela Procuradoria-Geral da República. No entanto, como essas irregularidades ou inobservâncias de normas contendem com o regular funcionamento dos Órgãos do Estado (os Tribunais nos termos da Constituição da República de Angola são órgãos do Estado - Órgãos de Soberania, tal como o PR e a AN) e porque o PR, nos termos da Constituição, deve promover e assegurar ou garantir o funcionamento regular de tais órgãos, mas não o fez, senão, detendo a chefia de Estado, convidar a presidente do Tribunal de Contas a apresentar a sua demissão, porquanto, apesar de possuir competências para nomear, verificados determinados pressupostos legais, o inverso não é verdade, ou seja, não a pode demitir ou exonerar como o faz em relação, por exemplo, aos ministros de Estado, ministros e secretários de Estado. Portanto, agindo nas quatro linhas da CRA, como o fez o PR, não se assaca nenhuma pressão para a renúncia e não se pode também extrair hipotéticas consequências de tal renúncia. Estamos em presença do princípio do paralelismo da forma na nomeação dos presidentes e vice-presidentes dos tribunais Superiores, isto é, quem os nomeia não os pode exonerar.

Olhando para a separação de poderes, que leitura jurídica se pode fazer do «convite» feito pelo PR para que Exalgina Gambôa renunciasse ao cargo?

A leitura jurídica possível, de alguma forma já referida na resposta anterior, não é outra senão do pleno e regular exercício dos poderes e competências por parte do PR enquanto Chefe de Estado, as quais estão expressamente consagradas na CRA.

O que podia acontecer, em termos legais, caso Exalgina Gambôa decidisse renunciar ao cargo, mas exigindo a sua permanência como juíza-conselheira do TdC?

A nomeação para Presidente do Tribunal de Contas imprescindível pressupõe a qualidade de conselheira, portanto, só pode ser presidente quem é conselheiro. As presumíveis irregularidades ou inobservâncias não são válidas ou não podem ser relevantes conforme seja conselheira presidente ou só conselheira, elas valem em ambas as situações. Portanto, não podendo ser conselheira presidente, não pode, também, continuar a ser conselheira.

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O Novo Jornal foi ainda ouvir o jurista Almeida Lucas Chingala, que chama a atenção para os contornos para a imagem do País, gerados pela existência de processos judiciais que envolvem individualidades de realce das instituições de Justiça.

O jurista entende que a Procuradoria-Geral da República (PGR) já se devia pronunciar sobre as denúncias de alegadas ilegalidades que envolvem a gestão de Joel Leonardo no Tribunal Supremo.

Que consequências se podem prever para o sistema judicial angolano quanto à renúncia da juíza Exalgina Gambôa nos termos que ocorreu?

Vamos olhar para as coisas em duas perspectivas: primeiro do ponto de vista da pessoa que renuncia, que perde a função e perde o estatuto que detinha, enquanto veneranda juíza-conselheira de um Tribunal Superior; segundo, do ponto de vista do impacto social que a notícia causa para a sociedade, neste caso, a notícia causa um impacto negativo, porque as instituições de justiça são a última barreira e os tribunais têm a crença de ser os que resolvem os litígios, são os tribunais que são íntegros, são os tribunais o último reduto para aquilo que têm sido o programa do Executivo para o combate à corrupção. E esse fenómeno de certa maneira vai-se repetindo nos últimos tempos, o que, por si só, é grave, ou têm sido promovidos para esses cargos pessoas cuja idoneidade é, de facto, questionável, ou, fruto da pressão do trabalho, as pessoas que se acreditavam íntegras acabaram cedendo numa ou noutra situação. E tem outra particularidade: as pessoas deixam de acreditar nas instituições, as pessoas, deixando de acreditar nas instituições de justiça, o nosso País fica comprometido, quer do ponto de vista nacional, quer do ponto de vista internacional. Porque ninguém vai querer investir num País cujos órgãos de justiça são marcadamente rotulados do ponto de vista da reputação e como tendo indivíduos cuja integridade esteja afectada, é preciso levar isso em linha de conta.

Há quem tenha considerado o convite do PR para que a veneranda juíza deixasse o cargo como uma interferência do Poder Executivo no Judicial?

O grave seria se o Presidente da República lhe tivesse dito saia, aí estaria a violar a Constituição. Lido o documento por mim também, uma vez que foi partilhado nas redes sociais, deu para perceber, claramente, que o Presidente da República, sendo um outro poder, portanto, o Poder Executivo, não orienta a juíza a sair, unicamente a aconselha a abandonar as funções por causa da responsabilidade que sobre o cargo pesa. E isso porquê? Porque os juízes são independentes e a Constituição da República de Angola, quanto a este aspecto, é muito clara sobre a independência dos juízes. Entretanto, o conselho podia ter sido acatado ou não, tendo sido acatado, o conselho causa um impacto e parece-me que a juíza em causa o acatou, mas isso não arrepia o princípio de Montesquieu que tem a ver com a separação de poderes, porque o Presidente não a exonerou por ela não fazer parte do poder Executivo. O artigo 174.º da Constituição fala dos limites funcionais da actuação do Presidente da República e quero crer, salvo entendimento melhor, que foi mais no âmbito de alguma cortesia institucional do lado do Presidente da República, o que não impedirá o órgão competente, no caso o Conselho Superior da Magistratura Judicial (CSMJ), de se debruçar sobre a matéria.

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