Aos 93 anos, Robert Mugabe dificilmente teria condições para continuar no poder, mas, como se pode ler das extensas análises publicadas nas últimas horas na imprensa sul-africana e zimbabueana, já ninguém duvida de que estava tudo a ser preparado para que a sua mulher, a intrépida e polémica Grace Mugabe, cujo role de episódios caricatos e estranhos, apesar de ter "apenas" 53 anos, menos 40 que Robert, cresce sem parar, viesse a ser a nova dona da presidência do país e da ZANU-PF.
Elemento central para esta certeza, está a recente exoneração do Vice-presidente do país, Emerson Mnangagwa, que, tal como Mugabe, é um histórico da luta pela independência do Zimbabué, respeitado no seio das Forças Armadas e que, logo após o seu afastamento, o chefe do Exército, que liderou o golpe, general Constantino Chiwenga, saiu a terreiro para avisar que haveria uma acção militar para levar os criminosos que rodeiam o Presidente à justiça pelo mal que estão a fazer ao país e ao povo.
Certo e sabido é também que, a escrever este guião para ser protagonizado por Robert, estava Grace e a sua facção no seio da ZANU-PF, denominada "G40", cujo objectivo era claramente o assalto ao poder agora que é por demais evidente que o nonagenário Presidente já não tem força para liderar, sendo igualmente factual que Emerson Mnangagwa se preparava para, também ele, dizer presente para a corrida ao lugar de Mugabe.
Evitar a escalada da violência a todo o custo
Abortado que foi o golpe de Grace e do seu "G40", cujo paradeiro, segundo várias versões, está confinada à sua casa com o marido, ou já longe, em Singapura, onde tem concentrados os seus negócios, erguidos a partir de gigantescos desfalques ao erário zimbabueano, os militares vieram de súbito dizer, claramente com o intuito de acalmar a comunidade internacional, que não se estava perante um golpe de Estado e que a normalidade seria reposta o mais breve possível.
Apesar de terem sido ouvidas explosões e tiros de artilharia e armas ligeiras em Harare, ao longo do dia de ontem, não são conhecidos nem mortos nem feridos, e a ocupação dos organismos públicos, desde a televisão estatal ao Parlamento, pelos militares, parece ter sido suficiente para conter quaisquer atritos com origem no outro lado da "barricada".
Isso mesmo exigiu o Presidente da África do Sul, na condição de presidente da SADC, onde Angola também joga um papel importante estando na liderança do órgão de Defesa e Segurança da Comunidade de Desenvolvimento da África Austral, garantindo às chefias militares que não seriam tolerados nem alterações de regime anticonstitucionais nem que o histórico Presidente Mugabe fosse molestado, bem como qualquer acrescento de violência.
Zuma enviou ao Zimbabué e a Angola, para ouvir sobre esta crise o que pensa o Presidente João Lourenço, dois dos seus ministros, o da Defesa e Veteranos, Nosiviwe Mapisa-Nqakula, e o ministro da Segurança do Estado, Bongani Bongo e convocou para hoje uma reunião de urgência da SADC para analisar a situação.
A reunião vai decorrer no Botsuana, e nela vão estar os chefes da diplomacia de Angola, África do Sul, Tanzânia e Zâmbia e do presidente do Conselho da SADC, da qual se espera que saia um documento de acção a impor limites aos lideres do golpe no Zimbabué.
Mas não deve ser necessário uma grande movimentação diplomática ou a nível militar porque cresce a convicção de que o objectivo dos militares foi alcançado com relativa facilidade: interromper o assalto de Grace Mugabe e do ministro das Finanças, Ignatius Chombo, outra figura terrífica que vive da corte mugabeana, ao poder, relançando o seu preferido ao lugar, o até há pouco tempo Vi-presidente Emerson Mnangagwa, na corrida.
Isso mesmo parece confirmar as informações divulgadas nas últimas hora de que este estará prestes a regressar ao país para reintegrar a corrida à liderança da ZANU-PF, com o apoio das Forças Armadas.
Para a população da capital, Harare, visto que, fora do centro do poder, este golpe, segundo as agências internacionais, só vagamente se fez sentir, a situação está a ser encarada com positiva expectativa, após um primeiro temor de que as coisas pudessem resvalar para um conflito armado. O que está posto de parte, para já...
Já nas classes mais abastadas, como as elites culturais e económicas, este afastamento de Grace e dos seus "sócios" da calha para o poder, bem como a deposição de Robert Mugabe, está mesmo a ser encarado como "um sonho tornado realidade", como descreveu no Twitter a autora e activista Grace Mutandwa.
Alias, as ruas de Harare voltaram rapidamente à normalidade, com as lojas a abrirem portas quase como sempre, tendo uma expressão saltado para os jornais como a síntese do que se passou nas últimas horas no Zimbabué: "A hora mais escura é mesmo antes da alvorada".
Militares condenados à paz
Um pouco por todo o lado surgiram apelos à contenção, com destaque para os EUA, Reino Unido, União Europeia ou ainda a União Africana e SADC.
Mas nem seria preciso, porque os militares zimbabueanos sabem que África não é o mesmo continente antes de depois da aceitação generalizada da Carta Africana para a Democracia, Eleições e Governação, os golpes de estado, miliares ou não, são condenados de forma veemente e não existem mecanismos que permitam o seu reconhecimento antes ou depois de efectivados.
Esta determinação impõe, mesmo que o objectivo dos militares à frente desta acção no Zimbabué seja provocar uma efectiva alteração no Governo, isso não pode ser declarado enquanto tal, porque estaria condenado à partida pela União Africana e todos os países membros ou organizações sub-regionais, como a SADC.
No Artº III do capítulo dos Princípios, a Carta Africana garante "a rejeição e condenação das mudanças anti-constitucionais de Governo", sendo que este princípio tem sido seguido de forma coerente durante as últimas ocorrências, como foi o caso, por exemplo, da Gâmbia, ou mesmo da Guiné-Bissau, entre outros.
Alias, é agora claro que a rápida ida à televisão do líder militar que liderou a deposição de Mugabe, o general Constantino Chiwenga, para garantir que não estava em curso nenhum golpe de Estado tinha por objectivo exactamente isso, informar que estavam a agir em conformidade, mesmo que a pisar a linha vermelha, de acordo com esta Carta Africana.
Até porque tinham como recente exemplo o que se passou na Gâmbia, ou Yahya Jammeh, foi rapidamente travado na sua intempestiva tentativa de regressar ao poder pela força após perder as eleições, entre outros casos ocorridos no continente.