Em Angola, foi declarado a 7 de Janeiro do corrente ano mais um surto epidémico de cólera. Como que a provar a relação íntima da cólera com a pobreza, o surto deflagrou no Bairro do Paraíso, município de Cacuaco, onde a pobreza não é relativa, mas absoluta e está à vista de todo o mundo, até dos amblíopes. No Paraíso, a habitação precária predomina, o saneamento básico é uma miragem, a luta pela obtenção de água para consumo é um martírio quotidiano, os mercados informais escondem-se por entre montões de lixo, e, por isso, as moscas e outros artrópodes vectores de doenças, convivem "harmoniosamente" com os humanos, transportando em suas patinhas cargas letais de bactérias que se replicam em dejectos humanos como é o caso do vibrião colérico, agente causal da devastadora cólera. Como a água escasseia, a higiene pessoal e colectiva é casuística e não regular e neste entretanto, contaminam-se alimentos e transmitem-se doenças que seriam evitadas com um simples gesto de lavar correctamente as mãos.
O Bairro do Paraíso tem, pois, todas as características de um bairro pobre, ou melhor, muito pobre, e, por isso, não espanta que tenha sido o "escolhido" para o vibrião lançar o seu manifesto desta vez. Mas, infelizmente, a pobreza em Luanda não se confina ao Paraíso, mas forma antes um continuum que se estende por todas as periferias de Luanda e se alastra pelo vasto território de Angola, onde são raríssimas as áreas inócuas à pobreza. Por isso, desde o Paraíso, a cólera rapidamente se disseminou para as províncias circunvizinhas do Bengo e Icolo e Bengo e daí para o Kwanza-Norte foi apenas um pulo. No momento em que redigimos este texto, quatro meses depois de declarado o surto, estão imunes da cólera apenas 4 das 21 províncias, nomeadamente Lunda-Norte, Moxico, Moxico Leste e Kuando. Das 17 províncias afectadas estão a ser particularmente fustigadas neste momento as províncias de Luanda, Benguela, Kwanza-Norte, Bengo e Icolo e Bengo, sendo Benguela, neste momento, o local em que o vibrião está particularmente activo.
Os números oficiais indicam, grosso modo, que a situação está longe de ser controlada, por isso o quadro geográfico de hoje pode ser radicalmente diferente amanhã. Estes números dizem que, desde 7 de Janeiro até 14 de Abril, foram notificados 12 600 casos de cólera e registados 475 óbitos, o que representa uma taxa de letalidade 3,8% que é considerada elevada para os padrões da cólera.
Estes números indicam que estamos perante um dos piores surtos de cólera que alguma vez assolou o País. 500 mortos por cólera em quatro meses é um número alarmante que não deveria deixar nenhum de nós sossegado. 13 mil casos de cólera em quase toda a extensão territorial em progressão quase geométrica é sinal de que a situação está longe de ser controlada e, por isso, muito mais angolanos serão afectados e muito mais mortos ainda vão ocorrer. As autoridades dizem-se empenhadas em debelar o surto, mas o que vemos, na prática, é um aumento de casos e consequentemente de óbitos. Quatro meses depois de declarado o surto, ainda assistimos a uma intensa actividade do vibrião nos pontos de origem e uma expansão vigorosa para Sul e para o Leste, sobretudo no eixo Luanda, Icolo e Bengo, Kwanza-Norte e Malange. Com a implantação da epidemia em Benguela, é muito provável que assistamos nos próximos tempos uma expansão epidémica consistente da cólera pelo Corredor do Lobito, se as medidas tomadas forem incapazes de suster a propagação do vibrião a partir de Benguela.
A questão que se coloca é então a seguinte: como foi possível chegar a níveis tão alarmantes na presente epidemia de cólera?
Foi possível chegar a este desastre epidémico porque, nos últimos anos, cresceram acentuadamente os níveis de pobreza em Angola. A péssima qualidade dos serviços públicos, particularmente no que diz respeito ao fornecimento de água, electricidade e saneamento básico, entrelaçados com outros factores de pobreza como a habitação precária, fome, degradação moral e desestruturação das famílias lavraram um terreno fértil para a disseminação de doenças como a cólera. Deflagrado o surto, estavam criadas as condições para a sua expansão em rastilho, como um raio fulminante. O Governo, porém, agiu com tibieza diante dos primeiros casos, optando por medidas bastante localizadas (no Paraíso) quando o combustível para a sua disseminação que é a pobreza já estava espalhado por todo o lado. Quando os focos de incêndio começaram a surgir por todo o lado, o trabalho dos "bombeiros" que são os profissionais de saúde tornou-se mais difícil, mas mesmo assim não foram disponibilizados meios à altura da dimensão real do problema com vista à sua mitigação. Digamos que o Governo subestimou o problema e é esta desproporção negativa de meios em relação à dimensão do problema que explica por que razão a situação está longe de ser controlada. Em virtude da exiguidade de meios, as medidas tomadas no sentido do controle da epidemia revelaram-se tíbias e isto explica o elevado número de mortes que se têm registado.
A situação é de tal ordem grave que nem mesmo no plano da comunicação os resultados parecem satisfatórios. Por causa disso, assiste-se a uma indiferença em relação à cólera com medidas essencialmente reactivas em vez de pró-activas. A título comparativo, a Covid-19 provocou num período de mais ou menos 18 meses perto de 60 mil casos com pouco mais de 1 700 mortos, representando uma taxa de letalidade de aproximadamente 2,7%. A taxa de incidência deste surto de cólera é de longe superior à da Covid-19, por isso, em apenas quatro meses, registamos já treze mil casos. Ficaríamos ligeiramente descansados com este número se não tivesse atrelada uma taxa elevadíssima de letalidade na ordem dos 3,7% que explica as cerca de 500 mortes registadas em pouco mais de quatro meses. O problema é que a Covid-19 é viral e se transmite essencialmente por via aérea, enquanto a cólera é bacteriana e se transmite fundamentalmente por via fecal oral. Portanto, em tese, a cólera é muito mais fácil de conter, quando as medidas adequadas são tomadas e o seu tratamento consiste essencialmente na correcção dos desequilíbrios hidroelectrolíticos supervenientes da intensa desidratação provocada pela toxina emitida pelo vibrião colérico. Um sistema de saúde bem estruturado permitiria um atendimento rápido dos casos, favorecendo a correcção destes desequilíbrios e a rápida restauração da saúde dos afectados. Neste surto, temos assistido a um número importante de mortos que ocorrem em contexto extra-hospitalar e, entre as mortes hospitalares assiste-se a um elevado número de mortes em crianças. A razão das mortes em crianças é fácil de explicar. É que a correcção dos desequilíbrios hidroelectrolíticos em crianças é um exercício delicado que demanda competências profissionais específicas que nem sempre se encontram nos centros hoje disponíveis para o tratamento da cólera.
Portanto, quer num caso (mortes extra-hospitalares), como no outro (alto índice de mortes em crianças), estão manifestas evidentes insuficiências do sistema que as autoridades têm-se revelado incapazes de superar e isto explica em grande medida o presente desastre epidémico que este surto de cólera patenteia. É preciso, portanto actuar mais incisivamente se quisermos de facto reduzir os custos a pagar com esta epidemia da cólera. Uma medida incisiva neste momento seria uma campanha intensiva de vacinação contra a cólera. Sabe-se que a vacina contra a cólera é de eficácia relativa, dada a grande variabilidade antigénica do vibrião colérico porque oferece uma protecção de curta duração, mas, em contextos de epidemia, tem revelado um enorme valor preventivo. Por isso, perante os números alarmantes desta epidemia, seria bom desenvolver uma extensa campanha de vacinação dirigida essencialmente para aqueles segmentos populacionais que habitam áreas de elevado risco em todo o País e não apenas nas áreas já contaminadas.
Mas o ónus do combate à cólera não deve recair exclusivamente sobre o Ministério da Saúde, como parece ser o caso. A abordagem desta epidemia deve ser eminentemente multidisciplinar com uma destacada presença das entidades ligadas ao abastecimento de água, os serviços comunitários dos governos provinciais, a comunicação social que deveria, a meu ver, intensificar as campanhas de sensibilização das populações sobre a cólera, as Forças Armadas que à semelhança de experiências anteriores poderiam ajudar no apoio às campanhas massivas de vacinação, enfim... O facto é que não se percebe até agora da parte do Governo esta mobilização extraordinária de pessoas e outros recursos, mesmo diante de tamanha calamidade que está a ser esta epidemia. Em vez de gastar 20 milhões de dólares com aquisição apenas de bandeiras para comemorar 50 anos da Independência, seria sensato canalizar estes recursos para o combate contra a cólera, o que seguramente contribuiria para evitar mais mortes por cólera. O tempo não está para desperdícios diante desta situação alarmante que é a cólera nas proporções que atingiu em Angola. A situação é grave e é assim que deve ser encarada e tratada.
É verdade que o curso natural da epidemia é a sua remissão. Mas permitir que a epidemia siga o seu curso natural, ou com o mínimo de acções de controlo, como se verifica agora, é permitir mais sofrimento e mais mortos entre as famílias. Um Governo de bem com um mínimo de sensatez não deveria permitir que isto aconteça. Desde logo porque são as políticas falhadas que empurraram as famílias para a condição de pobreza, lavrando este terreno bastante favorável à propagação de doenças como a cólera com taxas de letalidade nada generosas. O Governo deve, portanto assumir as suas responsabilidades com a situação presente, mobilizando todos os recursos possíveis para encetar um combate contra a cólera consentâneo com a real magnitude do problema.
Só desta forma será possível puxar a epidemia para níveis efectivamente controlados!
*Médico, docente e deputado à Assembleia Nacional pela UNITA
Tribuna de ideias/ Maurílio Luiele
Cólera em Angola: Descaso ou Descontrolo?
A cólera é reconhecidamente uma doença dos dejectos humanos, para ser mais claro, uma «doença do cocó», para não usar uma palavra que soa a insulto. Contrai-se a cólera quando uma pessoa ingere alimentos contaminados ou bebe água infectada com o vibrião colérico, isto é, água contaminada por dejectos ou fezes humanas. Isto significa que a cólera é uma doença muito relacionada à higiene individual e colectiva e muito particularmente ao saneamento básico. Baixos níveis de higiene e ausência ou deficientes sistemas de saneamento básico casam com pobreza e, por isso, é mister afirmar que a cólera é, para todos os efeitos, uma doença da pobreza. Onde a pobreza campeia os riscos de erupção de surtos de cólera e outras enterocolites menos severas são enormíssimas e deve-se sempre ter em conta esta possibilidade.
