Foi quase sem resistência, e muitas cenas caóticas de milhares de pessoas em fuga com os seus bens às costas, que o braço armado do Ruanda entrou este fim-de-semana em Bukavu, a capital do Kivu Sul, deixando o Presidente Félix Tshisekedi, em Kinshasa, entre a espada e a urgência de fazer qualquer coisa.
E, como é temido na região, e no mundo, com especial importância para Angola, como um dos seus grandes vizinhos, embora distante do epicentro das tensões mais abrasivas, e também porque o Presidente João Lourenço esta agora aos comandos da União Africana (UA), esta organização pan-africana é agora a última trincheira diplomática onde um conflito regional alargado ainda pode ser evitado.
Isto, quando são conhecidas, pelas agências internacionais, que, por um lado, o Burundi, aliado de Kinshasa, tem em curso manobras militares que indicam a preparação para uma intervenção mais musculada que os escassos três batalhões - cerca de mil homens - já enviados para o lado de lá da fronteira.
E por outro, mais a norte, o Uganda, aliado do Ruanda, não apenas está em manobras perigosamente próximo da fronteira com a RDC, para onde já enviou, segundo algumas fontes, mais de 2.500 militares, como o comandante das suas Forças Armadas, general Muhoozi Kainerugaba, afirmou publicamente que também vai tomar Bunia, a capital de Ituri, a terceira província do leste da RDC, com importância estratégica devido às riquezas no seu subsolo.
Face a este cenário, que não apenas parece mas é já claro que se trata de uma organizada conquista territorial dos territórios mais ricos do Congo pelos seus vizinhos, que estão a usar como justificação para a ocupação ilegal de territórios, a luta contra guerrilhas que alegadamente ameaçam as suas fronteiras.
Embora não existam evidências de que as ADF (Aliança das Forças Democráticas) do Uganda, ligadas ao `estado islâmico', são uma ameaça existencial para Yoweri Museveni, em Kampala, ou que as FDLR (Forças Democráticas de Libertação do Ruanda), sejam uma lâmina apontada ao poder de Paul Kagame, em Kigali, estas guerrilhas servem na perfeição para justificar a entrada no leste congolês.
A inexistente resistência congolesa, com as suas Forças Armadas (FARDC) claramente fragilizadas por décadas de corrupção, subfinanciamento, infiltrações de agentes ruandeses e ugandeses e desorganização, é a razão pela qual um país com mais de 100 milhões de habitantes, o 4º mais populoso em África, o 2º em área, e provavelmente o mais rico em recursos naturais, surge aos olhos do mundo dominado pelos seus vizinhos muito mais pequenos mas muito melhor organizados e, provavelmente, com apoios externos.
Isto, porque se sabe desde 2021, com provas documentadas pelas Nações Unidas, que o Ruanda apoia fortemente o M23 como ferramenta de cobertura para a sua exploração ilegal de minérios estratégicos, como o coltão, o cobalto ou as já famosas "terras raras", no leste da RDC, onde tem um dos pilares que lhe permitiram financiar o seu forte desenvolvimento económico e social nas duas últimas décadas.
E agora começa a ser perceptível igualmente que o Uganda também procura o seu "quinhão" das riquezas do subsolo congolês ao ameaçar directamente Bunia, a grande cidade de Ituri, que é a 3ª província do leste congolês, e também com um subsolo farto em minerais estratégicos para as indústrias 2.0 das grandes potências ocidentais.
Perante este avanço do M23, que terraplanou pela ponta das armas os processos negociais de Luanda e Nairobi, o ministro da Comunicação congolês veio a público admitir que Bukavu caiu com demasiada facilidade apenas de as forças congolesas terem feito tudo o que podiam para impedir o seu avanço e garantir a integridade territorial da RDC.
União Africana com muitas responsabilidades e poucas soluções
No seu discurso, ao tomar posse como presidente rotativo da União Africana, o Presidente angolano destacou como uma das suas prioridades, a resolução desta crise nos Grandes Lagos, depois de ver, sob a sua perspectiva privilegiada de pilar do Processo de Luanda, a derrocada de todas as tentativas de negociar a paz, tendo o meso sucedido com o Processo de Nairobi (ver links em baixo).
A grande questão agora é o que pode fazer João Lourenço agora que recebeu o martelo do poder da organização pan-africana com sede em Adis Abeba, na Etiópia, depois de anos de infrutíferos esforços para travar o Ruanda, primeiro, e agora que este conflito ganhe proporções regionais, o que se perspectiva como muito provável se o Burundi avançar contra o M23 no sul do Kivu, e se o Uganda, como parece inevitável, também lançar as suas tropas sobre Bunia.
Alguns analistas entendem que já é quase impossível impedir uma nova fase desta crise, com o envolvimento alargado de alguns actores regionais e sub-regionais, com destaque para o Burundi, o Uganda, a Tanzânia, o Quénia, e, por fim, mas não menos relevante, por ser considerada a grande potência militar dos Grandes Lagos, Angola.
A União Africana está plenamente consciente do risco de "balcanização" dos Grandes Lagos, uma referência histórico ao que se passou nos Balcãs, após o desmantelamento da antiga Jugoslávia, no início da década de 1990, que gerou uma situação de crise permanente até hoje após uma devastadora guerra entre os vários grupos étnico-religiosos ali presentes.
Isso mesmo foi dito pelo Comissário para os Assuntos Políticos, Paz e Segurança da organização continental, Bankole Adeoye, aos jornalistas, em Adis Abeba, pouco antes de João Lourenço tomar posse, aproveitando o conhecido pan-africanista nigeriano para frisar que a União exige a saída do M23 das áreas que ocupa no leste da RDC.
Em pano de fundo está a outra dimensão igualmente relevante desta crise que tem o Lago Kivu como centro, que é a longa de décadas animosidade étnica, envolvendo, principalmente, os Tutsi e Hutu ruandeses, com as suas ramificações familiares, culturais e linguísticas paraos vizinhos RDC, Uganda, Burundi e mesmo Tanzânia...
Tudo com alicerces do genocídio de 1994, no Ruanda, quando a maioria Hutu massacrou mais de 800 mil Tutsi, o que levou a uma vaga gigantesca de refugiados e de guerrilhas que nasceram nos campos de assentamento improvisado que se foram perpetuando, albergando hoje mais de 6 milhões de pessoas, e uma das mais graves e prolongadas crises humanitárias em todo o mundo, com campo agora limpo para crescer sem fim a vista.