Vamos aos factos:
No dia 08 de Abril, chegou a Menongue uma delegação do Grupo Parlamentar da UNITA constituída por três deputados e eu, na condição de assessor, para cumprir um extenso programa no quadro das Jornadas Parlamentares Municipais (ou nas Comunidades) previstas para todo o território nacional. Este evento foi, atempadamente, comunicado à presidente da Assembleia Nacional e a todos os senhores governadores provinciais a quem as diversas delegações deveriam render cumprimentos de cortesia em conformidade com o programa preestabelecido e atempadamente enviado a estas instâncias. Se, em grande número de províncias, os governadores tiveram o desplante de, oficialmente, recusar-se a receber as delegações de deputados, alegando falta de orientação do Titular do Poder Executivo, expediente absolutamente dispensável no âmbito da separação de poderes consagrada constitucionalmente, no caso do Kuando-Kubango, o governador provincial, José Martins, nem sequer se dignou em responder à missiva que lhe foi endereçada pelo Grupo Parlamentar da UNITA. Perante o silêncio do Governo da Província e perante as cartas que caíam em catadupa (cada uma puro decalque da outra) de outros governos provinciais, rejeitando os cumprimentos de cortesia, o Secretariado Provincial da UNITA no Kuando-Kubango encetou, na véspera, uma última démarche junto do Protocolo do Governo da Província que confirmou a total disponibilidade do governador para receber os deputados no dia seguinte (09/04) pontualmente às 9h00.
É assim que, no dia 09/04/2024, pontualmente às 9h00, os deputados deslocaram-se ao Governo Provincial para cumprimentos de cortesia ao governador do Kuando-Kubango. Postos lá, notámos um certo embaraço pelo protocolo que apenas compreendemos quando nos apercebemos de que o governador havia delegado o seu director de gabinete para nos receber, com a justificação de que ele tinha que presidir a uma reunião no Comité do Partido e que os dois vice-governadores estavam igualmente indisponíveis, sendo que a vice-governadora estava engajada na preparação da visita do procurador-geral da República ao Kuando-Kubango. Que desculpa mais estapafúrdia!! Ou seja, a figura do PGR é assim tão mais importante que os deputados ao ponto de a vice-governadora, de tão engajada na preparação da sua visita, não dispor sequer de 10 minutos para receber os deputados que, por sinal, já se encontravam em Menongue e na sede do Governo da Província? Pode haver falta de respeito maior do que esta aos deputados, membros de um órgão de soberania? Chama-se a isto sentido de Estado quando se torpedeiam, de ânimo leve, todos os desígnios protocolares do Estado? O Estado obedece a normas e tem ritos que não se compadecem com estas brincadeiras protagonizadas por titulares de cargos públicos que, com estas atitudes, acabam desvirtuando o carácter sério de que se devia revestir o Estado.
Na conversa que os deputados mantiveram com o director de gabinete do governador manifestaram todo o seu desagrado pela situação criada e apelaram governador para, no mínimo, garantir a segurança dos deputados, enquanto permanecessem no Kuando-Kubango.
Na noite do dia 10/04, chegaram às nossas mãos panfletos anónimos que diziam taxativamente: "a Unita no Cuito Cuanavale só tem entrada, não tem saída". Analisamos serenamente a ameaça aberta contida neste panfleto e concluímos que ela em si não deveria fazer alterar o nosso programa, mas, por precaução, deveríamos participar ao Comando Provincial da Polícia Nacional para que fossem tomadas as medidas cabíveis, no sentido do reforço da segurança dos deputados. Para além do ofício enviado ao Comando Provincial da PN, o secretário provincial da UNITA no Kuando-Kubango contactou por telefone, com o mesmo objectivo, o comandante provincial da PN, que, na ocasião, garantiu de viva voz toda a protecção possível à caravana da UNITA.
No dia 12/04/, a caravana aguardou que os efectivos da PN se juntassem para partir para o Cuito Cuanavale. Uma hora depois da concentração, os efectivos da PN não se faziam presentes no local da concentração, por isso o secretário provincial decidiu voltar a contactar por telefone o comandante provincial da PN. Nas múltiplas tentativas, o telefone esteve sempre indisponível e, por isso, tomou-se a decisão de se avançar sem os efectivos da PN.
Por volta das 10h00, a caravana aproximou-se da Comuna do Longa, cerca de 75 Km a Sul de Menongue. A comuna situa-se no cume de uma elevação, pelo que, do vale que antecede a comuna, não é possível perceber quaisquer movimentos que ocorram na sede da comuna, situada ao longo da estrada. Já na subida que dá acesso à comuna, sentimos que foram arremessadas pedras, algumas das quais atingiram algumas das viaturas que integravam a caravana. Ainda assim, entendemos ser mais sensato avançar, pois aquelas pedras jogadas no acesso à comuna nos areciam um acto isolado.
Ao atingir a sede da comuna, deparamo-nos, porém, com centenas de mulheres e crianças devidamente caracterizadas com camisolas e bonés do MPLA, lenços da OMA e outro material de propaganda devidamente identificado, entoando cânticos em nganguela, por isso, devidamente organizados, que obstruíam a estrada, o que obrigou a caravana a parar a sua marcha. Confortados com a presença de efectivos da PN da comuna no local, um dos quais com a patente de inspector-chefe, alguns de nós desceram dos carros, com vista a tentar uma negociação com aqueles populares organizados, para desobstruírem a via. O nosso espanto, todavia, é que os efectivos da PN encontrados no local não moveram uma palha no sentido de persuadir aquelas pessoas a desobstruir a via e tampouco esboçaram algum gesto no sentido da protecção dos deputados que faziam parte da caravana. Muito pelo contrário, a atitude daqueles polícias compaginava-se mais com a protecção dos autores daquela escaramuça.
Para a nossa surpresa, alguns minutos depois começou a chover em nossa direcção uma saraivada de pedras e pedregulhos, de forma tão violenta, tão violenta, ao ponto de pôr em causa a integridade física de todos os integrantes da caravana. Perante esta situação, tivemos de subir para os carros e sair sob pressão daquele local, rompendo a barreira que nesta altura já havia sido desfeita, indo posicionar-nos alguns quilómetros adiante, sentido Cuito Cuanavale, onde nos sentimos relativamente seguros. Durante aquele show de violência gratuita, pudemos assistir a um membro da caravana ser brutalmente atingido na cabeça com várias pedras e estatelar-se inanimado no terreno. Como era intensa a chuva de pedras que vinha de todos os lados, na nossa retirada precipitada não foi possível remover o nosso companheiro, pelo que o abandonamos aí no terreno e deduzimos que aquele companheiro havia mesmo perdido a vida.
No local onde nos podemos reposicionar, alguns quilómetros adiante da comuna do Longa, efectuámos contactos com a direcção do Partido e Grupo Parlamentar, Autoridades da Província e Comunicação Social, bem como fizemos um balanço preliminar dos danos provocados por esta acção de puro vandalismo. Contabilizámos no local nove feridos, quatro dos quais com alguma gravidade, e deduzimos que o companheiro que abandonamos no local estava morto. Para além disso, havia danos materiais consideráveis nas viaturas, duas das quais viaturas protocolares propriedade do Estado, as quais os vândalos não se coibiram de danificar.
Perante este saldo tão pesado, decidimos cancelar a ida ao Cuito Cuanavale e regressar imediatamente a Menongue. A única questão que se colocava era como voltar a passar por uma área altamente hostil, que era a comuna do Longa, sem as necessárias garantias de segurança? Aguardamos então que a PN, entretanto já notificada do incidente, viesse em nosso socorro para facilitar a nossa travessia pela sede da comuna do Longa. Como cerca de 3 horas após o incidente não havia sinal nenhum da PN do Kuando-Kubango, decidimo-nos a voltar a Menongue por nossa conta e risco, passando pela comuna em alta velocidade, para impedir que os vândalos alcançassem os seus intentos. Infelizmente, neste movimento de regresso, mais pedras atingiram algumas viaturas, provocando danos adicionais. Felizmente, nesta segunda incursão dos vândalos, não houve mais vítimas humanas.
Como se pode facilmente deduzir do relato acima, não se tratou de nenhuma acção espontânea de populares, como alguns tentaram insinuar. Nós que vivemos na pele estes acontecimentos temos fartas evidências de que se tratou efectivamente de uma acção premeditada, concertada e minuciosamente organizada para impedir que os deputados exercessem livremente a sua actividade no Cuito Cuanavale. Os autores morais e materiais desta acção criminosa, porque atentatória à integridade física de várias pessoas, entre elas deputados da Nação e bens patrimoniais do Estado, são fáceis de identificar se a Polícia Nacional, através dos seus órgãos de investigação, se engajar minimamente em esclarecer este triste episódio que ocorreu no território do Kuando-Kubango, mas que teve uma repercussão nacional. Não há como não assacar responsabilidades ao MPLA, quando os executores da acção nem sequer trataram de ser discretos, tendo equipado todos os participantes da acção com material de propaganda do MPLA, por sinal bem visível. Se o MPLA, porventura, não quisesse ser conotado com esta vil acção, teria, com certeza, impedido a utilização ostensiva do seu material de propaganda por estas pessoas. A atitude omissa da Polícia Nacional é mais um dado que aponta para os autores morais do crime. A PN, nesta acção, despiu-se claramente do seu carácter republicano e facilitou a acção dos vândalos, porque temia contrariar os chefes que arquitectaram esta acção que configura a mais pura intolerância política.
O que dói no meio disto tudo é que 22 anos depois do Entendimento do Luena, que devolveu definitivamente o calar das armas ao País e poucos dias depois de celebrarmos o 4 de Abril, ainda vemos uma força política da estatura do MPLA, com toda a responsabilidade que tem, protagonizar actos capazes de minar a ainda frágil reconciliação, que é uma das condições sine qua non para a conversão da paz das armas em paz social. Como salientou a CEAST, através da sua Comissão de Justiça, temos ainda um longo caminho a percorrer até atingirmos, de facto, o ideal de Reconciliação Nacional e este episódio do Kuando-Kubango é quanto a isso bastante sintomático.
Por isso, é com muita dor que concluo que o Ataque `Caravana de Deputados da UNITA no Kuando-Kubango foi uma acção premeditada, concertada e organizada perpetrada por pessoas afectas ao MPLA, Partido no Poder, em pleno mês de Abril em que se celebra a Paz em Angola, o que mina o espírito de Reconciliação Nacional.

*Assessor do Grupo Parlamentar da UNITA e integrante da caravana de Deputados da UNITA no Kuando-Kubango.