Ao longo dos séculos, poetas, pintores e pensadores retomaram esta alegoria como símbolo da ambição que, desancorada do real, se converte em ruína anunciada. Não é, pois, apenas uma história de desmesura juvenil, mas uma reflexão perene sobre os limites, a prudência e o governo racional das escolhas humanas. É sob este prisma que se torna pertinente observar as projecções do Orçamento Geral do Estado (OGE) para 2026: tal como o voo de Ícaro, a ambição económica que não assenta em fundamentos sólidos corre o risco de se transformar, não em ascensão, mas em queda previsível.
Numa economia em desenvolvimento profundamente dependente das receitas petrolíferas, como é o caso de Angola, OGE não é meramente um exercício contabilístico, mas o principal instrumento pelo qual o Estado traduz recursos públicos em políticas que promovem coesão social, reduzem a pobreza e geram crescimento inclusivo nos sectores não-petrolíferos. Estudos do Banco Mundial e do Fundo Monetário Internacional sublinham repetidamente que a volatilidade das receitas petrolíferas devem ser geridas com prudência e orientadas para medidas que estimulem a diversificação: transferências e redes de protecção social eficazes, subsídios temporários dirigidos e, sobretudo, a capitalização de fundos públicos para financiar investimentos na agricultura e na indústria transformadora onde existam vantagens comparativas e potencial de criação de emprego.
Ora vejamos,
A execução orçamental até ao 3.º trimestre de 2025 demonstra que várias rubricas estão longe de convergir para os valores aprovados para o ano. Por exemplo, a receita petrolífera apresenta execução de apenas 62,16%, a receita não-petrolífera regista 58,01%, o financiamento interno está particularmente distante, com 34,51% e o financiamento externo está com 48,31%. Esta magnitude de desvios demonstra, de forma inequívoca, que as bases macroeconómicas que fundamentaram as projecções do OGE não se materializaram e que a trajectória de execução não sustenta um fecho minimamente próximo dos valores aprovados. Por outro lado, o desempenho da receita está a condicionar sobremaneira a capacidade do Executivo prosseguir com a implementação de políticas públicas prementes na actual conjuntura.
Assim, torna-se difícil compreender como as projecções da proposta de OGE 2026 podem sustentar valores, em alguns casos, ainda mais ambiciosos. Importa começar por referir que a proposta apresenta uma redução da receita petrolífera para Kz 7.501,22 mil milhões, face aos Kz 10.852,30 mil milhões aprovados para 2025. Esta redução, embora coerente com a queda estrutural da produção de petróleo bruto e a persistência de preços internacionais moderados, não é acompanhada da devida fundamentação técnica. Ainda assim, a redução é, em si, plausível.
A proposta orçamental aventa uma receita não-petrolífera de Kz 10.680,08 mil milhões, o que equivale a um crescimento de 20,9% face aos Kz 8.832,34 mil milhões aprovados para 2025 - um voo ascensional que, não fora a solenidade do documento, poderia ombrear com o entusiasmo imprudente de Ícaro. Um crescimento desta magnitude só poderia assentar em três hipóteses igualmente ambiciosas: um dinamismo extraordinário da economia interna, com um crescimento real do PIB não-petrolífero superior a 10%, para o qual não existem indícios empíricos; um aumento expressivo da carga tributária, que não foi anunciado nem debatido, além de ser politicamente temerário no actual contexto social; ou, em alternativa, um combate à evasão ao fisco de proporções quase míticas, capaz de elevar a arrecadação em cerca de 21% num único exercício.
Sem qualquer destas condições, a projecção corre o risco de se revelar, tal como as asas de cera do infeliz Ícaro, mais inspirada pelo desejo de altitude do que sustentada pela realidade material que a deveria amparar. Nenhuma destas hipóteses é apresentada ou apoiada pela fundamentação técnica que acompanha o orçamento. Por conseguinte, a previsão adquire contornos de manifesta irrealidade, aproximando-se do que a literatura económica designa por over-optimistic bias, comprometendo não apenas a credibilidade da política económica do Executivo em termos gerais, mas também, de forma particular, a confiança no seu desenho orçamental. Aliás, a afirmação de um responsável da Equipa Económica de que, em 2026, pela primeira vez, a receita não-petrolífera superará a arrecadação petrolífera revela uma imprudência que desafia qualquer critério técnico e deveria, por si só, provocar pasmo nos corredores do Palácio Presidencial. Pasme-se!
Nesta mesma senda, observa-se uma tendência grave cada vez mais evidente na Equipa Económica de transformar os números orçamentais numa espécie de jogo de hide and seek: cifras que se escondem e reaparecem, somas que ora coincidem, ora se desviam misteriosamente, desafiando qualquer leitor atento a decifrar a verdade subjacente. No Relatório de Balanço de Execução Trimestral, por exemplo, enquanto o OGE aprovava Kz 12.623,2 mil milhões para despesas de capital financeiro e reportava uma execução acumulada de Kz 5.589,4 mil milhões, a soma do serviço da dívida nos três primeiros trimestres, oficialmente divulgados pelo próprio Executivo, totaliza Kz 9.026,0 mil milhões. Ora, essa discrepância grave e significativa aumentaria a despesa global acumulada até Kz 23.202,34 mil milhões, e não os Kz 19.361,5 mil milhões apresentados no referido relatório. Camaradas, este tipo de dissonância aproxima-se de um voo à "la Ícaro": audacioso, chamativo, mas perigoso, colocando em risco a credibilidade técnica e a confiança no rigor do OGE, enquanto revela um hábito inquietante de brincar com a realidade orçamental, em vez de a confrontar de forma transparente.
As consequências de um OGE construído sobre premissas irrealistas reverberam muito além das finanças públicas, atingindo de forma directa o bem-estar da população e a percepção histórica do Presidente João Lourenço nesta reta final do seu segundo mandato. Do ponto de vista macroeconómico, a sobrestimação da receita - quer tributária quer de financiamento - conduz à sub-orçamentação da despesa corrente, à subavaliação do défice orçamental e ao subdimensionamento das necessidades reais de financiamento, gerando pressões adicionais sobre a dívida. Na prática, isto traduz-se num recurso acrescido ao financiamento de curto prazo, com impactos adversos sobre as taxas de juro, a inflação, a sustentabilidade da dívida, a taxa de câmbio e as expectativas dos investidores, afectando negativamente a notação de risco soberano (sovereign rating) e, em última análise, a credibilidade do próprio Executivo. Para o cidadão comum, estas consequências manifestam-se em maior incerteza económica, menor capacidade do Estado em garantir políticas sociais eficazes, erosão do poder de compra e redução do investimento em sectores estratégicos, comprometendo o crescimento inclusivo e deixando uma marca indelével sobre o legado presidencial.
Assim, torna-se imperativo que os Deputados do Partido no poder intervenham com rigor e sentido de responsabilidade para proceder aos ajustes necessários ao OGE 2026, de forma a torná-lo realista e efetivamente capaz de induzir políticas públicas calibradas ao contexto económico e social actual. O Presidente João Lourenço não pode permitir que este orçamento se transforme numa repetição de equívocos passados, pois tal não só penalizaria o Povo, negando-lhe recursos vitais para a coesão social e o desenvolvimento económico, como comprometeria de forma irreversível o seu próprio legado. Como sabiamente observou Benjamin Franklin (1706-1790), estadista, inventor e pensador norte-americano, "quem não sabe obedecer não está capacitado para liderar", lembrando-nos que o verdadeiro exercício do poder exige, antes de mais, sensibilidade e respeito pelas necessidades da colectividade. É, portanto, um apelo à responsabilidade colectiva e à prudência política: apenas através de um orçamento realista, transparente e orientado para o interesse público será possível preservar a estabilidade económica, reforçar a confiança dos cidadãos e garantir que a memória histórica do mandato presidencial não fique marcada por promessas incumpridas, mas por resultados concretos e duradouros para o bem-estar da Nação.
Bibliografia
• Proposta de Orçamento Geral do Estado para 2026, Ministério das Finanças, Novembro 2025.
• Relatório de Execução Orçamental Trimestral do OGE: III Trimestre de 2025, Ministério das Finanças, Novembro 2025.
• World Bank: Prioritizing Angolan Agriculture to Unlock Economic Diversification, March 2024.
*Professor Auxiliar de Economia e Investigador
Business and Economic School - ISG
OGE 2026: Entre as asas de cera de Ícaro e a realidade económica
Desde a Antiguidade clássica, a figura de Ícaro ocupa um lugar singular no imaginário intelectual. Imortalizado por Ovídio, nas Metamorfoses (século I d.C.), o mito narra o engenho de Dédalo, que fabrica asas de penas e cera para fugir do labirinto, advertindo o filho para não voar demasiado alto. Ignorando o conselho, Ícaro ascende para além do razoável; o calor do sol desfaz as asas e precipita a sua queda fatal.

