No combate à epidemia de Ébola, no ano passado, na República Democrática do Congo (RDC) e na África Ocidental, em 2013/14, foram noticiados várias situações em que as populações recusaram o tratamento em hospitais de campanha montados pela OMS ou pelos Médicos Sem Fronteiras, entre outros, por desconfiarem de estarem a ser usadas como cobaias.
Também, como exemplo, correu mundo a tese de que, nos anos de 1980, o regime do apartheid sul-africano espalhou o vírus da Sida entre as populações negras na Namíbia e na África do Sul através de equipas militares disfarçadas de médicos inseridos em programas internacionais de vacinação contra doenças como a pólio ou a febre-amarela.
Agora, face ao avanço fulgurante da pandemia da Covid-19 pelo mundo, com África a ser o continente menos afectado, mesmo que não se conheça a fundo a razão para esse facto estatístico, dois reputados médicos franceses, Camile Locht, chefe do francês INSERM (Instituto Nacional de Saúde e Pesquisa Médica), e Jean-Paul Mira, director do Departamento de Cuidados Intensivos do hospital Cochin, em Paris, vieram, em declarações a um canal de TV gaulês, defender que os testes para criação e aprovação de vacinas sejam feitos em África.
Jean-Paul Mira disse, admitindo que a frase seria "provocadora" e em jeito de interrogação, que os testes deveriam ser realizados em África, onde "não há máscaras, nem tratamentos nem cuidados de reanimação".
E continuou: "Um pouco como é feito noutras paragens para estudos sobre o HIV, em prostitutas, experimentando nestas porque sabemos que estão altamente expostas e não se protegem a elas próprias".
O que recebeu a concordância de Camile Locht, anunciando que o seu INSERM estava em processo de decisão para a realização de um "estudo paralelo" em África, sem mencionar em que países.
Eto"o ataca pela direita, Drogba pelo centro e OMS remata
A primeira reacção surgiu nas redes sociais, um pouco por todo o lado, tendo as críticas crescido de forma robusta depois de alguns jogadores de futebol famosos, como Drogba ou Samuel Eto"o, se terem insurgido com a perspectiva racista por detrás das palavras dos médicos e investigadores franceses.
E, por fim, a própria OMS, através do seu director-geral, Tedros Adhanom Ghebreyesus, veio tecer duras críticas a Locht e a Mira acusando-os de terem proferidos ideias "racistas", sublinhando que África "não pode e nem vai ser campo para experiências e testes sobre vacinas".
Num tom severo e demonstrando total desagrado pelo que os dois médicos franceses disseram, Tedros Adhanom Ghebreyesus acusou-os de terem uma "mentalidade colonial", acrescentando que foi "uma desgraça, um horror, ouvir em pleno século XXI, da boca de reputados cientistas este tipo de afirmações. Condenamos estas ideias da forma mais veemente possível e asseguramos que isso nunca irá acontecer", sublinhando que os africanos não serão cobaias involuntárias para uma vacina contra a Covid-19.
Este episódio surge num momento em que o mundo se debate com a pandemia com mais capacidade de dispersão pelos cinco continentes, que já fez mais de 1,4 milhões de casos confirmados, 82 mil mortes, com o foco em países como os Estados Unidos, que lideram de longe a lista de casos, com 400 mil, entre estes 12.900 mortos, 2 mil nas últimas 24 horas, o maior número registado de sempre em todo o mundo em apenas um dia, a Itália, Espanha, França ou Alemanha, sendo a China, com 83 mil o 6º mais afectado, apesar de ter sido ali que tudo começou.
Enquanto África, apesar de em patologias graves, como a malária, entre outras, liderar o mundo, neste caso é onde a Covid-19 menos se implantou, sendo a África do Sul o país com mais casos, cerca de 1800, com 13 mortos, enquanto Angola, que está na cauda da tabela no continente, tem já 17 casos registados, com duas mortes assacadas ao novo coronavírus.
Mas a OMS, e mesmo organismos como a Fundação Mo Ibrahim, têm vindo a alertar para o risco de África, devido aos seus pobres e frágeis sistemas de saúde, à falta de infra-estruturas de saneamento básico, com milhões de pessoas a viverem em subúrbios de cidades com evidente insalubridade, vir a ser em breve o campo de mais rápida e letal progressão da Covid-19.
Isto, apesar de algumas teses, veiculadas por cientistas de renome, defenderem que o continente conta com algumas singularidades que o protegem da progressão da doença, como, por exemplo, a temperatura média ou a humidade relativa, que dificultam a transmissão do vírus, embora na ponta Sul e na ponta Norte, onde os climas são mais frios e secos, mais semelhantes à Europa, por exemplo, estejam ocorrer os maiores números de casos em África, seja na África do Sul, seja em Marrocos, na Argélia ou no Egipto.
Já depois das declarações de Mira e Locht, em alguns países, como a Costa do Marfim, centros para gerir a crise pandémica localmente foram atacados pelas populações enfurecidas com receio de que se tratasse de um local de testes para novos medicamentos, quando, no caso de Abidjan, se tratava apenas de um local de gestão burocrática dos meios disponíveis para todo o país.
Mas é igualmente visível que uma das medidas preconizadas pela OMS e bem acolhida pelos governos em todo o mundo, o distanciamento social, está a ser de facto difícil de impor em alguns países, como é o caso de Angola, embora longe de ser o mais evidente, porque nas grandes urbes africanas, como Lagos, na Nigéria, ou Joanesburgo, na África do Sul, as aglomerações de milhares de pessoas continuam a ser realidade.
Na maior parte dos casos, porque as pessoas não têm meios de subsistência que lhes permita substituir a labuta diária com que alimentam as suas famílias, seja na venda ambulante, seja nos pequenos serviços, como, em Luanda se conhece pelas zungueiras ou raboteiros, entre outros tantos exemplos.
Mas África não pode ficar para trás
Mas as fragilidades económicas e sociais em África não podem justificar que o continente fique arredado das soluções que estão a ser procuradas e investigadas pelas grandes e ricas potências mundiais.
Porque, como alertou esta semana um grupo de 165 lideres mundiais, entre estes o antigo Secretário-Geral da ONU, Ban Ki-Moon, o investidor George Soros, o antigo presidente do Banco Central Europeu, os três antigos primeiro-ministro britânico, Gordon Brown, Tony Blair e John Major, ou, entre outros, o Prémio Nobel da Economia Joseph Stiglitz, a pandemia da COvid-19 só pode ser derrotada plenamente se não ficarem resíduos soltos em alguns locais do planeta.
Estes dirigentes de organismos internacionais, associações, cientistas e antigos e actuais dirigentes políticos juntaram-se para lançar um apelo aos mais ricos do mundo para que as crises de saúde pública e económica gerada pela Covid-19 sejam combatidas de forma coordenada e em simultâneo sem esquecer os mais pobres de África e da América Latina.
Os países mais ricos não podem esquecer, apontam estes 165 líderes, que se a epidemia da Covid-19, provocada pelo novo coronavírus, que surgiu em Dezembro último na cidade chinesa de Wuhan, não for combatida em simultâneo nas frentes das crises na saúde e na economia, sem esquecer que as latitudes mais empobrecidas, como o continente africano e a América Latina, não podem ficar para trás, mais cedo ou mais tarde, o vírus vai regressar em força à Europa, aos Estados Unidos ou à China, porque terá sempre um reservatório onde pode aguardar por nova oportunidade.
Para estes representantes de organizações não-governamentais, cientistas, filantropos, antigos primeiros-ministros e actuais governantes, está a querer enfatizar é que os sinais mais evidentes hoje no contexto da luta contra a Covid-19 vão no sentido de uma ausência de união de esforços e de partilha de meios e de informação, especialmente entre os países mais desenvolvidos e com mais meios.
Para acudir a essa desorganização, em cima da mesa, os 165 querem que seja aprovado um pacote financeiro de emergência na ordem dos 8 mil milhões de dólares destinado a criar condições para evitar vagas secundárias da pandemia a partir de países com menor capacidade de exterminá-la e mais 150 mil milhões para esbater os efeitos dramáticos subsequentes.
Na carta enviada ao G20 é feito um apelo para que seja criada uma task force com poderes executivos que agilize o trabalho que urge fazer na coordenação global do combate ao coronavírus, juntando a esse pedido uma exigência de que seja efectivado um mecanismo de alívio da dívida dos países mais pobres e um aumento de fundos no FMI e Banco Mundial disponíveis para isso.
E defendem que o fim da crise económica não vai ter sucesso até que a Covid-19 seja debelada, mas, ao mesmo tempo, notam que é impossível acabar com a pandemia deixando países para trás por serem pobres e com falta de meios técnicos e financeiros.
Uma das medidas mais proeminentes é proposta ao FMI e ao Banco Mundial para deferirem no tempo, e incentivarem outros credores a fazer o mesmo, o pagamento de juros, invectivando os mais ricos a gerarem um pacote de 44 mil milhões destinado em exclusivo ao continente africano.
Porque os melhores sistemas de saúde do mundo estão à beira do colapso por causa da pandemia, se nada for feito, à medida em que a doença se espalha para os países mais pobres de África e da América Latina, com falta de infra-estruturas de saúde, com milhões a viver em condições sem água nem saneamento, onde a distância social é fisicamente impossível, então a Covid-19 vai persistir ali e ressurgir no resto do mundo, mais cedo ou mais tarde, prolongando indefinidamente a crise económica.