"O país perde seguramente um dos maiores estrategas, com visão não só militar como política", destaca Paulo Lara, num testemunho enviado ao Novo Jornal Online por email.
Para além de assinalar que a figura do General João de Matos é indissociável da "situação de agressão e de guerra civil" que o país enfrentou "durante mais de duas décadas depois da sua independência", o ex-guerrilheiro do MPLA recorda alguns dos seus traços pessoais.
"Camarada e amigo, com elevado sentido de humor, preocupado com os seus subordinados, exigente antes de mais com ele próprio, pouco rancoroso, com um elevado sentido de dignidade, homem de princípios e convicções, são algumas das características que poderia apontar", retrata Paulo Lara, desfiando as memórias de quase quatro décadas de convivência.
"Conhecemo-nos em 1980, durante o Congresso do MPLA onde, curiosamente, tivemos intervenções parecidas. Voltamos a estar juntos na ex-União Soviética, em academias diferentes mas com um curso semelhante, onde se aprofundou a nossa amizade e foi o período em que revelou a sua capacidade de liderança mesmo junto de mais velhos provenientes da guerrilha", lembra o general e mentor da Associação Tchiweka de Documentação.
Com o regresso a Angola, Paulo Lara e João Baptista de Matos mantiveram contactos regulares, precursores das FAA. "Estivemos juntos em tudo o que foram encontros de Estado-Maior e grandes operações até que fossem criadas as FAA", conta, acrescentando que o facto de João de Matos ter passado a ser também seu Chefe de Estado-Maior General não afectou os laços estreitados.
"A nossa relação caracterizou-se pela amizade que se criou ao longo dos anos, de uma conivência e até cumplicidade em posições políticas e militares, mas também pela disciplina militar em que as decisões tomadas já não se discutiam, mas cumpriam-se", sublinha Paulo Lara.
João de Matos "foi sem dúvida nenhuma a pessoa certa para o grave momento que se vivia"
Defendendo que João de Matos "foi sem dúvida nenhuma a pessoa certa para o grave momento que se vivia", Lara compara a sua importância histórica à do soviético Jukov ou à do britânico Montgomery durante a II Guerra Mundial.
"Podemos dizer que na dimensão africana, perdemos um General da mesma envergadura que, sem dúvida, teve um papel preponderante na manutenção da soberania ao longo de 26 anos e para que hoje estivéssemos em Paz", considera, recuperando alguns capítulos da trajectória do seu ex-Chefe do Estado-Maior.
"João de Matos fez parte daquela geração de jovens que integraram as FAPLA logo após a queda do fascismo em Portugal, em Abril de 1974, e que se distinguiu pela sua capacidade de iniciativa, direcção, combatividade e coragem, mas também, naquela altura, como um militante do MPLA que não receava exprimir as suas opiniões críticas", salienta Paulo Lara, para quem "estas virtudes fizeram com que viesse a ascender nos escalões militares, passando de simples instruendo para comandante de unidades, de Regiões Militares e finalmente das Forças Armadas Angolanas".
O contributo do falecido general - nos anos 80 traduzido no "surgimento de um conceito operativo e organizacional adaptado à realidade do teatro operacional angolano e que levaria à constituição de novas orgânicas, mais aligeiradas que as anteriores" -, permanece contudo por reconhecer, lamenta Paulo Lara.
"O reconhecimento das nossas figuras históricas ainda continua sendo um problema por resolver e não me parece que exista a sensibilidade e real preocupação de o fazer. Olhemos pelas figuras esquecidas e quais foram as enaltecidas...", critica o general e filho do nacionalista Lúcio Lara, ressalvando, porém, que o tema deve ser abordado noutro momento.
Para que haja legado, há necessidade de se conhecer o homem e o General
Ainda assim, Paulo Lara nota que "para que haja legado, há necessidade de se conhecer o homem que foi João Baptista de Matos, o homem e o General", algo que exige um esforço colectivo.
"Acredito que surjam colegas a contribuir com as suas memórias, académicos interessados em estudar e escrever sobre o seu percurso, e então a juventude terá mais uma figura de referência deste país que já foi glorioso, de um angolano que soube pôr-se à disposição do seu país, oferecendo várias vezes a sua vida para a defesa da soberania da sua Pátria", sublinha o mentor da Associação Tchiweka de Documentação, apelando à investigação nacional.
"O General Matos deixa o exemplo de quem foi firme na luta, que nunca se vergou, sempre manteve a sua dignidade, que conseguiu edificar umas Forças Armadas nacionais e criar as condições necessárias para alcançarmos a Paz no País. As Operações "Zebra", "Restauro" entre outras, a edificação das FAA em que ele teve o papel preponderante, são fontes que deveriam ser investigadas para servirem de estudo pelos nossos militares".
Os méritos do ex-Chefe de Estado-Maior General, assumem particular relevância no contexto de criação das FAA, frisa Paulo Lara.
"O General Matos seria o edificador das actuais Forças Armadas Angolanas apartidárias, numa altura de total decomposição e desmoralização das ex-FAPLA face às forças savimbistas intactas. Sob a sua direcção seriam destruídas as unidades regulares, passando pela neutralização das suas bases de rectaguarda no ex-Zaire e Congo-Brazzaville e permitindo que um ano após a sua saída das Forças Armadas se assinassem os Acordos com a UNITA em 2002".
Entre os marcos históricos e as lições pessoais, Paulo Lara aponta um dos vários momentos que lhe ficaram na memória: a Assinatura do Acordo de Lusaka, firmado em 1994 com a UNITA, e marcada pela ausência do líder Jonas Savimbi.
"Como era hábito com o surgimento de alterações da situação, apresentei na altura, de forma antecipada, algumas variantes operativas para as Forças Armadas em função do Acordo surgido, incluindo a possibilidade de um respeito do mesmo pela UNITA. Fui fortemente reprimido pelo Chefe de Estado-Maior. O General foi incisivo: todas as variantes deviam ser estudadas, menos acreditar que Savimbi respeitaria tais acordos", recorda o general, extraindo do episódio outra das características de João de Matos.
"Seguro nas suas análises e imperturbável nas suas decisões e convicções. As pressões internas, nacionais e internacionais que o acusavam de ser o protagonista da guerra em Angola, nunca o abalaram. A História deu-lhe toda a razão".