O Sheikh Tamim bin Hamad al-Thani, que hoje estará em Moscovo para um encontro com Vladimir Putin, é conhecido em todo o mundo por estar disponível para procurar desatar nós nas negociações mais complexas, como já tinha feito no Afeganistão, ou, mais recentemente, entre a RDC e o Ruanda a propósito do conflito no leste congolês.
E este seu avanço, manifestado nas palavras do porta-voz do Ministério dos Negócios Estrangeiros do catar, Majed al-Ansari, citado pela russa RT, como uma disponibilidade que sempre existiu, aparece num momento em que os Estados Unidos começam a perder espaço de manobra.
Isto, porque tanto os países europeus aliados dos EUA na NATO como a Ucrânia mostram uma crescente desconfiança para com os esforços de acabar com a guerra de Donald Trump, apontando para isso a aproximação da Casa Branca ao Kremlin.
Este mal-estar entre europeus e norte-americanos, que está a ser aproveitado pelo Catar para aparecer nos grandes palcos da política global, levou mesmo a presidente da Comissão Europeia, a alemã Ursula von der Leyen, a dizer que o regre.sso de Trump ao poder nos EUA produziu o fim do "Ocidente" enquanto geografia de partilha de valores.
"O Ocidente como o conhecíamos já não existe, o mundo é agora um globo geopolítico e as redes de interesses e amizades espalhou-se, como se pode ver com o evento da guerra das tarifas", disse a líder europeia, num posicionamento que afasta a Europa dos EUA e que tem, também, na guerra da Ucrânia um dos seus efeitos mais visíveis.
Este afastamento progressivo das opções entre europeus e norte-americanas sobre o conflito no leste europeu não é de agora e tem-se manifestado nos esforços europeus de substituir os americanos na linha da frente do apoio a Kiev.
Isso ficou claro, por exemplo, nos esforços do Presidente francês, Emmanuel Macron, e do primeiro-ministro britânico, Keir Starmer, de deixar de fora os EUA na criação de uma nova frente de aliados de Kiev para manter a pressão sobre a Rússia, com encontros ora em Paris ora em Londres, ao mesmo tempo que a União Europeia anunciava apoios recorde ao regime de Volodymyr Zelensky.
E, em paralelo, em Washington têm-se somado os sinais, e as decisões, de que os EUA já não estão totalmente alinhados com Kiev e as suas linhas robustas de apoio em armas e dinheiro são hoje quase nenhumas ao contrário do que sucedia com a anterior Administração de Joe Biden.
Ao mesmo tempo, no campo da diplomacia, EUA e Rússia caminham a passos largos para a normalização das relações bilaterais, que foram totalmente colocadas a zero por Joe Biden, com rondas negociais que se repetem ora na Arábia Saudita ou na Turquia.
No meio deste terramoto diplomático iniciado por Donald Trump, desde logo na sua aposta, para já falhada, de acabar com a guerra em horas, semanas ou em três meses, que não vai deixar pedra sobre pedra no xadrez global, a Ucrânia emerge como a parte fraca nas cedências que Washington está disponível para fazer em nome da retoma das relações com Moscovo.
Uma das razões que começam a ganhar forma para esta escolha da Administração Trump, como o Novo Jornal tem noticiado há largas semanas, é a urgência dos EUA afastarem a Rússia da China, diluindo a sua parceria estratégica, porque quando chegar a hora do duelo a sério com Pequim, Washington precisa de ter os russos fora da linha de fogo.
E o entrave maior nesta estratégica jogada de Trump parecem ser agora os europeus, que, ao manterem o apoio, reforçando-o mesmo, à Ucrânia, tanto em financiamento como em armas, mesmo que aquém do que era o apoio dos EUA de Joe Biden, não permitem que a Casa Branca possa fechar o dossier desta guerra com um acordo de paz no qual Kiev terá de, como já o disse o secretário de Estado Marco Rubio, passar pela cedência de territórios a Moscovo.
O que nem o Presidente Zelensky nem os seus aliados europeus aceitam e prometem manter o conflito em brasa para retardar o mais possível o triunfo da Rússia de Vladimir Putin, com quem recusam negociar nos termos que tanto o Kremlin como a Casa Branca têm em cima da mesa, que é a cedência territorial, a manutenção da Ucrânia fora da NATO, neutral, e a sua desmilitarização parcial...
Ora, é para tentar contornar esse obstáculo que Donald Trump enviou esta quinta-feira a Paris o secretário de Estado, Marco Rubio, e o seu enviado especial para o conflito no leste europeu, Steve Witkoff, onde vão reunir com os lideres franceses, alemães e britânicos, além de Andrii Yermak, o conselheiro principal e Chefe de Gabinete de Zelensky.
Os media internacionais ocidentais, como o britânico The Guardian, estão a avançar que esta reunião de Paris visa permitir a europeus e norte-americanos encontrar um "terreno comum" para levar a guerra para o seu ocaso, mas, sendo conhecidas como são as exigências inamovíveis dos russos, a intenção de Trump será mais "forçar" os seus aliados a cederem.
É que tanto Witkoff como Pete Hegseth, secretário da Defesa, além de Trump, já disseram publicamente que as posições russas, nomeadamente no que toca às regiões anexadas desde 2014, Crimeia, Kherson, Zaporizhia, Donetsk e Lugansk, e a neutralidade ucraniana fora da NATO, são para levar a sério.
Ora, sendo assim, e com as relações entre Washington e Moscovo penduradas na evolução do conflito ucraniano, com os americanos a precisarem de afastar urgentemente russos e de chineses, a Washington resta convencer os seus velhos aliados, e os ucranianos, a cederem às exigências do Kremlin, que é o que deve estar por detrás deste encontro de alto nível em Paris.
A parte ucraniana, que é a mais frágil e está claramente agora dependente do apoio europeu, sabendo da importância deste momento, vai ser composta, além de Yermak, que é o homem forte do círculo mais próximo de Zelensky, o ministro da Defesa, Rusten Umerov, e dos Negócios Estrangeiros, Andriy Sybiga, o que permite a tomada de decisões de largo espectro sem a obrigação de permanente contacto com Kiev.
Mas não vai ser fácil a Rubio e Witkoff convencer os europeus, que estão, pelo menos na retórica oficial, a querer distanciar-se dos EUA e a sair do seu chapéu protector militar, com investimentos gigantescos na defesa, na ordem dos 800 mil milhões de euros até 20230, e quando Trump ameaça sair da NATO ou reduzir muito o seu financiamento, que é hoje de mais de 55% do total dos gastos anuais da organização militar transatlântica.
Isso mesmo pode ser visto nas recentes afirmações do primeiro-ministro francês, François Bayrou, que veio acusar, horas antes deste encontro, os EUA de terem "traído o mundo democrático" ao optarem por Moscovo em vez dos seus velhos aliados que mantém, ou mantinham, segundo a líder europeia, Ursula Leyen, desde 1945, com o fim da II Guerra Mundial, uma sólida relação política, diplomática e militar.
Bayrou disse mesmo que a aproximação dos EUA a Moscovo "minou a confiança entre os seus aliados" e "fez tremer a ordem mundial" que levou a que, como a líder europeia defendeu, o Ocidente enquanto geografia de partilha de interesses e valores tenha deixado de existir, especialmente com a exigência da Casa Branca de cedências ao Kremlin no contexto da guerra.
Entretanto, num pormenor curioso, a Bloomberg acaba de divulgar uma peça onde destaca que a moeda russa, o Rublo, é já este ano a unidade com melhor comportamento em todo o mundo, ultrapassando mesmo o ouro, ao crescer quase 40% face ao dólar norte-americano, contra os escassos 23% do ouro, que é visto como bem de refúgio para os investidores em épocas de choque de placas tectónicas de interesses geoestratégicos e crises financeiras e económicas.
Isto é relevante porque desvitalizar a economia russa era um dos objectivos principais do "Ocidente" ao disparar milhares de sanções contra Moscovo no contexto desta guerra, que vem de 2014, e da invasão russa da Ucrânia em 24 de Fevereiro de 2022.