Há meses que os bloggers de guerra, tanto do lado russo, estes, naturalmente, com maior efusividade, mas também do lado ucraniano, discutem o mal-estar galopante entre o Presidente ucraniano, Volodymyr Zelensky, e o seu Chefe de Estado-Maior General, general Valery Zaluzhny, devido a opiniões divergentes sobre a condução da guerra.
Sabe-se que este diferendo se densificou e os dois homens fortes do regime em Kiev, o Presidente com o apoio dos aliados da NATO, especialmente dos EUA e do Reino Unido, e Zaluzhny, como o mais bem visto dentro das Forças Armadas e entre a população, que nele confiam cegamente, travam uma letal luta interna que, como nas guerras convencionais, todos sabem como começam, ninguém pode adivinhar como vão acabar.
Para já, e depois de os media ocidentais fieis a Kiev, como a CNN International, The New York Times, The Washington Post, The Walll Street Journal ou, entre outros, o Financial Times, quase em uníssono, o que pressupõe uma estratégia desenhada nos bastidores pela intelligentsia norte-americana, terem começado a evidenciar esta perigosa "linha da frente" no seio do regime ucraniano, finalmente, na semana passada, quase todos anunciaram que Zelensky iria, finalmente, demitir o general Zaluzhny neste fim-de-semana.
Tal não sucedeu, com os media ocidentais a admitirem que o Presidente estava a perder vigor no exercício do poder e que Zaluzhny não podia ser descartado sob risco de uma convulsão interna descontrolada, exigindo, por isso, intermediação dos países ocidentais, nomeadamente os EUA, o que acabou por suceder com a deslocação apressada da sub-secretária de Estado, Victoria Nuland, a Kiev.
Ao que tudo indica, Victoria Nuland, que é o falcão de guerra de garras mais afiadas em Washington, e tem uma ligação umbilical ao assumir do poder por Zelensky em Kiev, e ao golpe de Estado de 2014, quando foi deposto o Presidente pró-russo Viktor Yanukovych, foi à capital ucraniana dizer que os EUA estão com o Presidente, dando um golpe letal nas aspirações do ainda CEMGFA Valery Zaluzhny.
Depois de quase uma semana de rumores e mujimbos em Kiev a apontar para um eventual golpe de Estado militar, a situação parece agora estar a retomar uma relativa normalidade com o Presidente Volodymyr Zelensky a assumir as rédeas do comando e a anunciar, ele próprio, numa entrevista à televisão italiana RAI, que não só vai demitir o general Zaluzhny como, com o CEMGFA, vão também embora vários governantes e comandantes militares.
No cerne desta batalha interna está, sabe-se agora com clareza, o facto de o general Zaluzhny entender que manter a intensidade dos combates com as forças russas na extensa, mais de 1.200 kms, linha da frente, levará inevitavelmente à exaustão da capacidade de combate ucraniana, com baixas, entre mortos e feridos, impossíveis de substituir, e armamento que não vai ser reposto pelos aliados ocidentais devido ao atrito no Congresso dos EUA e às complexas e cada vez mais pesadas negociações entre os aliados da Europa Ocidental.
Zelensky, em suma, quer a Ucrânia a lutar até ao último ucraniano, para dar tempo de os aliados ocidentais ultrapassarem os seus diferendos e voltarem a fazer fluir para Kiev os biliões de dólares e as toneladas de armamento como sucedeu em 2022 e até meio de 2023 - a maioria dos analistas acha esse cenário irrealista -, enquanto Zaluzhny entende que a melhor estratégia é evitar as baixas, poupar vidas e material de guerra, de forma a impedir que a resistência do país colapse com estrondo e a própria soberania nacional seja posta em causa.
A visão de Zelensky, aparentemente, está a ganhar vantagem e isso deverá ficar claro ainda esta semana, com a demissão do CEMGFA e dos seus comandantes, além de um número de lideres políticos que ainda está por perceber a dimensão e importância. Mas a verdade é que isso ainda não sucedeu...
Para já, Zelensky prolongou por decreto a Lei Marcial no país, bem como a Lei de Mobilização Geral permanente, o que lhe confere poderes quase absolutos, tal como, por exemplo, adiar sine die a realização das eleições Presidenciais, que deveriam ocorrer em Março, o que é normal ocorrer em tempo de guerra.
Entre os possíveis substitutos de Valery Zaluzhny estão o actual chefe da secreta militar ucraniana, a SBU, Kirylo Budanov, considerado o líder da linha mais radical entre o círculo mais próximo de Zelensky, ou o general Oleksandr Syrsky, o actual comandante das Forças Terrestres, um russo que optou pela cidadania ucraniana, considerado menos abrasivo que Budanov na forma como encara a guerra, até porque tem um conhecimento directo das tremendas dificuldades que as suas unidades enfrentam na linha da frente.
A maioria dos analistas com peso e relevância na análise sobre este conflito defende que a cedência de Zaluzhny possa subentender uma estratégia de dar um passo atrás para depois avançar dois, porque, sendo, como é, apontado há meses como o adversário mais plausível para disputar a Presidência com Zelensky quando as eleições voltarem ao seu calendário normal, ficar por agora fora da responsabilidade pela carnificina das trincheiras é um forte trunfo político, especialmente depois de deixar saber que se opõe a esta estratégia de ignorar a mortandade entre as tropas ucranianas em nome de um objectivo destinado a falhar.
E as primeiras críticas já se fizeram ouvir, primeiro, de forma subtil, pelo ex-Presidente Petr Poroshenko, que se aliou a Zelensky no início da guerra, e, agora, de forma mais abrasiva, pelo presidente da câmara de Kiev, o antigo pugilista e figura de proa nacional, Vitalii Klitschko, que afirmou publicamente ser um erro "despedir" o general Zaluzhny porque "é a ele que se deve o facto de a maioria dos ucranianos ainda acreditarem nas Forças Armadas".
O popular autarca de Kiev acusou mesmo Zelensky de demonstrar "falta de bom senso" e de mostrar alheamento do que é o interesse nacional face aos interesses pessoais.
A isto, o Presidente ucraniano responde que um "reset" é essencial para dar um novo impulso a resposta militar à invasão russa, demonstrando que, como os analistas avançaram bastante antes, se, a partir de certa altura, não o fizesse, perderia o pé do poder, embora seja um movimento arriscado, porque o peso que o ainda CEMGFA tem na sociedade ucraniana é de tal monta que, a partir desse momento, todos os cenários são possíveis, inclusive uma revolta popular.
Pelo que é possível compreender das diversas notícias sobre este assunto, tanto na imprensa ocidental, como na ucraniana e na russa, Zaluznhy foi, primeiramente, "convidado" por Zelensky para pedir a demissão, ao que este lhe responderu que não o faria e que se se quisesse ver livre dele, que assumisse a responsabilidade e o fizesse por decreto. E, citado pelo The Guardian, a Reuters salienta a opinião, em tom de aviso, de um comandante de unidade na linha da frente que diz que "quando se substitui uma pessoa desta relevância para as Forças Armadas, é bom que esteja garantido que quem o vai substituir esteja à altuira".
E é isso mesmo que Zelensky se prepara agora para fazer. O Presidente ucraniano só daria este arriscado passo com as costas protegidas por Washington e foi isso mesmo que a sub-secretária de Estado dos EUA, Victoria Nuland, foi fazer a semana passada a Kiev, convencer Zelensky de que a Ucrânia deve continuar a combater até ao último homem as forças russas, porque essa é a única via de manter em aberto o apoio dos aliados ocidentais, mesmo os que estão actualmente mais reticentes e cansados da guerra.
Entretanto, na linha de combate, as unidades russas estão a avançar no terreno em diversos pontos, com destaque para as escaldantes batalhas de Avdiivka, na região de Donetsk, em Kupiansk, na região de Kahrkiv, na zona de Zaporizhia, na área de Robotine, e ainda em Kherson, nas margens do Rio Dniepre.