A número dois do Departamento de Estado, conhecida pela sua ligação próxima ao regime de Kiev, e pilar do apoio de Washington ao golpe de Estado que em 2014 depôs o Presidente aliado de Moscovo Viktor Ianukovytch, substituindo-o no poder pelo pró-americano Petro Poroshenko, foi agora a Kiev enviar um recado para o Presidente russo sobre as novas ofensivas ucranianas em preparação para 2024.
Estas ameaças de Nuland, considerada o mais agressivo falcão de guerra em Washington, surgem quase ao mesmo tempo que o chefe da intelligentsia militar ucraniana, Kirill Budanov veio a público anunciar uma nova contra-ofensiva ucraniana para a Primavera, Maio ou Junho, deste ano.
As palavras de Nuland e de Budanov, que surgem no espaço público desamparadas do anúncio do reforço do apoio em equipamento militar e financeiro, que se sabe estarem a secar devido à oposição republicana no Congresso dos EUA, estão a ser consideradas por vários analistas uma fuga para a frente em desespero.
Isto, porque, como os media ocidentais, especialmente os norte-americanos e alemães, estão a avançar com redobrada periodicidade, as forças ucranianas estão em sérias dificuldades para suster os avanços russos em quase toda a linha da frente, onde Moscovo passou à ofensiva depois do estrondoso falhanço da contra-ofensiva ucraniana do Verão de 2023.
Essa ofensiva foi alimentada por centenas de carros de combate e milhares de misseis e milhões de munições de artilharia fornecidos pela NATO, terminou com a destruição quase total do armamento entregue a Kiev e com centenas de milhares de baixas, entre mortos e feridos, do lado ucraniano, embora a Rússia tenha igualmente sofrido pesadas baixas nas suas unidades, tanto humanas como materiais.
A diferença é que a máquina industrial militar russa tem conseguido manter o fluxo de produção de armamento em contínuo enquanto a Ucrânia está a sofrer com uma forte redução do apoio ocidental e incapaz de substituir os militares tombados em combate.
Apesar destes dados serem agora diariamente expostos nas páginas dos media ocidentais, com destaque para The Washington Post, Politico, Financial Times, ou os alemães Die Welt e Focus, como não se via em 2022 e na primeira metade de 2023, a linha dura em Kiev insiste em manter as ameaças de novas ofensivas para as quais nem Budanov nem Victoria Nuland explicam como vão encontrar meios para sustentar.
Alias, as garantias de Nuland e Budanov chocam de frente com a realidade política nos EUA, onde, em maré de campanha eleitoral, os democratas de Joe Biden estão-se a debater com acrescidas dificuldades impostas pela maioria republicana da Câmara dos Representantes, para aprovar o pacote de apoio para Kiev na ordem dos 60 mil milhões USD.
E sabe-se igualmente, como o próprio já garantiu, se o candidato republicano e ex-Presidente Donald Trump, vencer, como as sondagens todas indicam que sucederá, as eleições de 05 de Novembro, Washington deixará de apoiar Kiev, porque o antigo guardião das chaves da Casa Branca garante que acaba com a guerra na Ucrânia em 24 horas.
Há, contudo, uma luz ao fundo do túnel ucraniano, com a aprovação esta quinta-feira, no Conselho Europeu, um apoio de 50 mil milhões de euros para a Ucrânia, o que pode alterar a actual fragilidade ucraniana na guerra, onde Moscovo está em clara vantagem no terreno.
Não se sabe se Victoria Nuland está a contar com o apoio financeiro europeu para municiar as forças ucranianas dos meios militares que escasseiam em KIev, mas a própria, que ficou conhecida em 2014 por ter mandado "à merd..." os europeus, disse que deixava a capital ucraniana "com redobrado entusiasmo perante a unidade e garantias de que em 2024 as surpresas para Vladimir Putin vão ser belas".
O espirito vitorioso de Victoria Nuland contaminou, provavelmente, Kirill Budanov, que disse ao britânico Telegraph que Kiev vai lançar ma nova ofensiva na Primavera na qual a derrota de Moscovo está assegurada, mas sem avançar com que meios e com que Exército o fará, embora sustente a afirmação com a "exaustão das forças russas" que espera para breve.
Isto, quando os media internacionais têm dedicado páginas e espaço ao conflito interno que está a ser travado entre o Presidente Volodymyr Zelensky e o seu CEMGFA, Valery Zaluzhny, a quem exigiu que se demitisse devido aos fracassos no campo de batalha mas este recusou, criando um caso de insubordinação que muitos analistas admitem que pode desenvolver-se para um golpe palaciano.
O golpe interno
O pedido de Zelensky para a demissão de Zaluzhny está a ser noticiado pelos media ucranianos, russos e ocidentais, tendo mesmo o britânico The Guardian citado um deputado ucraniano "amigo" do CEMGFA que garante que o general recusou demitir-se e que agora ao Presidente só resta demiti-lo por despacho, o que gera muitas dúvidas sobre como vai reagir a estrutura de comando militar a essa mais que provável saída para este braço-de-ferro.
Alguns analistas admitem mesmo que a postura de recusa e desafio de Valery Zaluzhny ao Presidente Volodymyr Zelensky pode constituir um acto de insubordinação militar, um dos mais graves crimes da lei militar em todos os países organizados, abrindo espaço para que o general CEMGFA possa ser acusado na justiça militar.
Para já, segundo a Constituição ucraniana, o Presidente deixa de poder ir além do exercício de gestão do país depois de Março, quando termina o prazo do seu mandato, devendo manter-se no cargo sustentado pela Lei Marcial, usada em contexto de guerra, em que a Ucrânia se encontra, se, como já o anunciou, não estiver a pensar realizar eleições presidenciais em Maio, como está previsto no calendário eleitoral do país.
Com o estrondoso falhanço da ofensiva do Verão do ano passado, onde, apesar da entrega pelos países da NATO de biliões de dólares em material de guerra, os ucranianos esbarraram nas linhas defensivas russas, estando, no presente, a sofrer uma ofensiva russa que está a empurrar as linhas ucranianas em direcção ao Rio Dniepre, a tensão em Kiev entre o comando militar e a Presidência está a ganhar densidade de pré-golpe.
Ocidente e Zelensky, as coisas já estiveram melhor
Isto, porque se adensam as evidências de que a linha radical em torno do Presidente Zelensky está a ser vista como um problema por parte dos aliados ocidentais, europeus e EUA, apesar da retórica contrária a essa ideia, devido ao cansaço gerado pelo conflito e as suas consequências nefastas para a economia europeia, como o recente relatório do FMI o demonstra.
E Zaluzhny aparece com a imagem da ponderação que permite encarar outras saídas para a guerra fora da radical proposta de 10 pontos do Chefe de Estado, que exige a saída de todos os soldados russos de todos os territórios ucranianos definidos pelas fronteiras de 1991, ano da independência ucraniana da então União Soviética, incluindo as anexadas Crimeia (em 2014) e Lugansk Donetsk, Kherson e Zaporizhia (integradas na Federação Russa em 2022), o que o Kremlin já disse ser irrealizável, porque seria como entregar Moscovo.
Este duelo de galos que está a deixar Kiev a ferro e fogo, como explicam ainda os jornais Financial Times e The Economist, não é novo e só agora está a emergir das profundezas onde está em latência há meses, desde que Zaluzhny, no ano passado, manifestou a sua discordância pública com Zelensky sobre a batalha de Bakhmut.
Nessa batalha histórica, onde foram protagonistas pelo lado russo os combatentes do Grupo Wagner, o general queria retirar para poupar as vidas dos seus militares e o Presidente, e comandante-supremo, exigiu a continuação dos combates por meses, de onde resultou não só a derrota ucraniana mas também a perda de, segundo diversas fontes, entre 40 mil a 70 mil tropas, entre mortos e feridos.
Desde esse momento, Zelensky e Zaluzhny deixaram de ser vistos como aliados, mantendo a postura, segundo diversas fontes, para não atrapalhar o fluxo de dinheiro e armas do ocidente, coincidindo o fim dos esforços para manter as aparências com a redução substancial desses apoios ocidentais, especialmente dos EUA, onde o Presidente Joe Biden está de mãos atadas perante um Congresso cada vez mais adverso ao apoio a Kiev.
Agora, com Zelensky a sair do radar das boas graças ocidentais, Zaluzhny parece ter deixado cair a máscara e está a assumir aquilo que já está a ser anunciado por vários analistas á meses, que é o facto deste ter já decidido que vai ser candidato à Presidência assim que forem marcadas as eleições Presidenciais que apenas estão a ser proteladas devido à Lei Marcial em vigor no país.
Face a este crescente mal-estar, o Ministério da Defesa ucraniano emitiu um comunicado onde nega que o Presidente tenha despedido o seu CEMGFA, mas não é dito em nenhuma declaração oficial que Zelensky não pediu a Zaluzhny para se demitir de mote próprio, oferecendo-lhe o cargo máximo no Conselho Nacional de Segurança e Defesa, como refere The Economist.
A pesar para o lado do general está o facto deste aparecer em quase todas as sondagens, sendo a última de há três semanas, de um instituto universitário de Kiev, onde Zelensky viu a sua popularidade e confiança cair de 83% há um ano para cerca de 60% agora, enquanto o ainda CEMGFA está bem visto e tem a confiança de 88% dos ucranianos.
Como tem referido amiúde o analista militar da CNN Portugal, general Agostinho Costa, o general Valery Zaluzhny é o militar ucraniano com mais prestígio internacional e sem ele à frente das Forças Armadas da Ucrânia, todo o relacionamento com a NATO corre o risco de se deteriorar.
Isto, porque a alternativa que mais surge nos radares para o seu lugar é o actual chefe dos serviços secretos "militares ucranianos, Kirylo Budanov, considerado o mais radical da ala radical que circunda Zelensky e que preconiza não só a continuação da guerra com a Rússia, como é este sector que quer alargar o recrutamento a quase todos os homens até aos 60 anos, além de estar por detrás da mais extravagante e recente ideia.
Ideia essa que passa por Kiev exigir aos seus aliados europeus que deixem de apoiar os refugiados ucranianos que saíram do país a seguir a 24 de Fevereiro de 2022, data do início da invasão russa, como forma de os incentivar, ou forçar, a regressar ao país para serem recrutados e enviados para a linha da frente.