E Volodymyr Zelensky ainda ouviu a última coisa que queria ouvir da boca do Presidente Joe Biden que, numa declaração pública, com o visitante ao seu lado, disse que os Estados Unidos já não vão apoiar a Ucrânia "até quando for preciso" para derrotar a Rússia no campo de batalha, como tem sido repetido à exaustão até aqui, mas sim "até quando for possível", o que muda quase tudo para Kiev que sabe que sem o fluxo contínuo de armas e dinheiro dos EUA, a derrota com a Rússia vai chegar rapidamente, como o próprio já admitiu publicamente.
E não parece que esse fluxo ininterrupto de dinheiro e armas norte-americanas tenha pernas para andar, porque as conversas do Presidente ucraniano com os representantes dos republicanos, na oposição, e democratas, no Congresso, tenha corrido bem, até porque a maioria republicana da Câmara dos Representantes já disse que não vai aprovar o pacote de 60 mil milhões USD para os ucranianos sem verem cumpridas condições que a Administração democrata de Joe Biden muito dificilmente poderá cumprir.
Face a este impasse gerado pelo Congresso, e quando os EUA se encaminham para o ano das eleições, em Novembro de 2024, com o candidato Joe Biden a ver as sondagens a esmagar as suas possibilidades e a agigantar as do seu opositor quase certo, Donald Trump, o antigo Presidente que já disse que o apoio a Kiev acaba assim que chegar de novo à Casa Branca, tudo parece mais complicado para Zelensky.
Esta visita à capital dos EUA, anunciada em cima da hora, como sempre, coincide com uma das mais severas sucessões de ataques russos a Kiev, seja através de uma avassalador ataque cibernético, que deixou o país quase sem comunicações móveis, incluindo os seus sistemas de alerta de ataque a"wereo, além de danos severos noutros sectores dependentes da internet e das telecomunicações, seja através de uma vaga de misseis e drones apontados às infra-estruturas eléctricas ucranianas.
Ainda assim, apesar das más notícias, Zelensky voltou a ouvir palavras simpáticas do seu anfitrião, mas sem que lhe tenha sido entregue mais que um "bónus" pela presença de escassos 200 milhões USD, uma verba quase irrisória quando comparada com as tranches anteriores, que ultrapassavam, por norma, os mil milhões USD, em ciclos mais curtos que as que actualmente são anunciadas e, especialmente, quando comparada com os 61 mil milhões USD que compõem o pacote enviado por Biden para aprovação pelo Congresso e que está atolado na irredutibilidade republicana.
E não deverá haver alterações a este ritmo de envio de apoio para Kiev pelo menos até Fevereiro, se for conseguido um entendimento entre democratas e republicanos, estando estes com uma posição sólida de não aprovar qualquer novos apoios financeiros se a Administração Democrata não ceder na questão do fecho da fronteira com o México e aprovar medidas draconianas de combate à imigração, além de outras medidas no contexto da segurança interna, a "prioridade das prioridades" da oposição do partido de Donald Trump.
Mesmo que o Presidente Biden tenha recorrido ao imaginário mais básico de medo do papão russo, afirmando que se os republicanos não aprovarem o apoio à Ucrânia, "estarão a dar o melhor presente de Natal que (o Presidente russo, Vladimir) Putin poderia receber".
Putin que está, segundo o porta-voz do Kremlin, Dmitri Peskov, "muito atento" ao que se está a passar por estes dias em Washington, sublinhando que nenhum dinheiro, por mais que seja, vai fazer qualquer diferença na guerra em curso na Ucrânia, como, sublinhou, não fez diferença o que já foi enviado - mais de 120 mil milhões, segundo várias fontes - para Kiev, desde que o conflito começou, em 24 de Fevereiro de 2022.
Também na Europa, o apoio a Kiev está a esfumar-se, apesar de, tal como a Administração Biden, os lideres europeus repitam as promessas de apoio robusto ao esforço de guerra ucraniano, sem que isso tenha uma relação directa com a realidade, visto que os aliados europeus e membros da NATO têm admitido incapacidade para manter o apoio massivo que se verificou no primeiro e no início do segundo ano de guerra, mesmo nas questões mais simples, como as munições de artilharia para as armas ocidentais oferecidas, como os carros de combate e os "canhões" de 155 mm.
Isto, quando as fontes russas e ocidentais mais próximas da linha da frente começam a coincidir na ideia de que a Rússia é quem está actualmente na ofensiva e com ganhos substantivos de territórios, especialmente nas zonas de maior atrição, como Avdiivka, Bakhmut, Novopokrovka, Robotyne ou Kharkiv.
Também o número muito elevado de baixas, de um e outro lado, embora não seja possível aceitar como válidos os números divulgados tanto em Kiev como em Moscovo, mas com maior dificuldade de reposição nas fileiras da linha da frente por parte do lado ucraniano, está a gerar incómodo em Kiev, quando cresce a recusa de alistamento, levando Zelensky a fazer aprovar legislação para alargar a idade de recrutamento no âmbito da lei marcial, estando já esse a ser feito nas escolas secundárias.
Ao mesmo tempo, sendo esta informação igualmente veiculada por analistas e media ocidentais, são cada vez mais sonoras as informações de um ambiente de golpe de Estado militar em Kiev devido à diferença de opiniões sobre a condução da guerra entre o Presidente Zelensky e o seu círculo mais próximo, e o general Valeri Zaluzhny, o CEMGFA ucraniano.
Em Moscovo, onde os problemas não são muito diferentes, embora menos sonoros, para já, o ambiente é de campanha eleitoral para as eleições Presidenciais de Março de 2024, nas quais Vladimir Putin sairá vencedor sem grande dificuldade, até porque o seu mais férreo opositor, Alexey Navalny, está detido no contexto de processos judiciais considerados ilegítimos por várias organizações internacionais.
Disponibilidade para conversar
Em Moscovo, depois de, logo nos primeiros dias de guerra, que começou a 24 de fevereiro de 2022, se foi ouvindo a disponibilidade para negociar com Kiev, porque os territórios conquistados, aparentemente, seriam prémio suficiente para o Kremlin.
E também para Kiev, aparentemente, naquelas primeiras semanas, negociar seria a melhor opção, o que ficou demonstrado pelas rondas negociais que existiram e o documento onde estava plasmado um acordo de paz chegou mesmo a ser rubricado...
Mas foi rasgado e atirado para o lixo por Volodymyr Zeleensky quando o intempestivo primeiro-ministro britânico, Boris Johnson, irrompeu pelo Palácio Presidencial em Kiev e "obrigou", com o beneplácito dos EUA, Zelensky a travar as conversas com o Kremlin, continuar a guerra, "até à derrota total dos russos", comprometendo a NATO a fornecer armas e dinheiro de forma ilimitada para que isso fosse possível.
Centenas de milhares de mortos e feridos depois, e quase dois anos passados desde a invasão russa, nem a Ucrânia está a ganhar a guerra, nem os países da NATO, especialmente os EUA, parecem querer ou poder manter para 2024 o apoio que se viu em 2022 e no início de 2023, seja por razões políticas ou económicas ou por mudança de governos, como sucedeu na Eslováquia, ocorreu no Congresso dos Estados Unidos e acaba de acontecer nos Países Baixos e na Polónia.
E, internamente, em Kiev, amontoam-se os problemas para o regime, porque não só o Chefe de Estado-Maior General das Forças Armadas ucranianas, Valerii Zaluzhny, está cada vez nitidamente em contramão com a posição de Zelensky, aludindo mesmo a uma situação de "impasse" na frente de guerra, como são cada vez mais evidentes os problemas no circulo do poder polítrico e militar e até na incapacidade de recrutar para as fileiras do Exército.
Depois de há algumas semanas, naquele que foi o mais evidente sinal de que algo vai mal em Kiev, o ajudante de campo de Valery Zaluzhny, o major Gennadiy Chastyakov, ter sido morto, no seu dia de aniversário, com uma granada disfarçada de presente, agora - soube-se na terça-feira - foi a mulher do chefe da intelligentsia ucraniana, Kyrylo Budanov, Marianna Budanova, ter sido envenenada com um composto complexo de metais pesados, estando a ser tratada num hospital sob cuidados intensos.
Embora seja muito difícil descortinar a verdade no meio de uma outra intensa e devastadora tempestade de contra-informação gerada nos dois lados das trincheiras, é já claro em Kiev que Zelensky e Zaluzhny não pensam da mesma forma sobre a condução da guerra e isso leva os analistas, mesmo ocidentais, a admitirem que ou o Presidente afasta o CEMGFA e os seus generais mais leais, ou o CEMGFA acaba por tomar o poder de forma a mudar a condução política e diplomática desta guerra.
Até porque, segundo a imprensa internacional, Kiev não está a conseguir cativar os jovens para se alistarem para a guerra, com uma fuga em massa para longe dos recrutadores, muitos deles mesmo para o exterior do país.
Para alterar este estado das coisas, o Governo de Zelensky contratou empresas privadas para proceder ao recrutamento de jovens, e menos jovens, para as Forças Armadas, demonstrando claramente dificuldades neste campo, o que se pode traduzir por uma afastamento dos cidadãos da causa da guerra, especialmente quando, com o passar do tempo, apesar da propaganda, a morte e o sofrimento já estão em todas as famílias, em todas as casas da Ucrânia.
E esse ambiente pesado de esmorecimento da impetuosidade nacionalista na Ucrânia ficou ainda mais em evidência com a falhada contra-ofensiva de Verão (ver links em baixo nesta página), com a qual Zelensky prometia derrotar sem piedade os ocupantes russos, mas que se revelou um fracasso, apesar do envio de milhares de carros de combate ocidentais, misseis e artilharia modernos em grandes quantidades... que o secretário-geral da NATO, Jens Stoltenberg, chegou mesmo a dizer que "foi entregue à Ucrânia tudo o que Kiev pediu aos seus aliados para derrotar a Rússia".
Também do lado russo, onde, com igual intensidade, as mortes chagam a casa das famílias, mesmo que o universo de recrutamento seja muito superior, provocando crescente mal-estar, e no terreno, as forças do Kremlin sentem as mesmas dificuldades devido não mau tempo.
No entanto, a diferença é que Vladimir Putin tem repetido a disponibilidade para negociar, embora exija para o efeito a cedência de Kiev dos territórios que anexou, as quatrio províncias conquistadas em 2022, de Donetsk e Lugansk, no Donbass, e Kherson e Zaporizhia, no sul, além da Crimeia, desde 2014.
E essa condição é igualmente rejeitada de forma liminar por Zelensky, que insiste na ideia de que só haverá paz no dia em que o último soldado russo deixar todo os territórios da Ucrânia reconhecidos pela comunidade internacional, que são os que existiam aquando da independência da antiga URSS, em 1991.
Contexto da guerra na Ucrânia
A 24 de Fevereiro as forças russas iniciaram a invasão da Ucrânia por vários pontos, tendo o Presidente russo dito que se tratava de uma "operação militar especial", sublinhando que o objectivo não é a ocupação do país vizinho, condição que evoluiu depois para a anexação de territórios no Donbass mas também as regiões de Kherson e Zaporijia, mas sim a sua desmilitarização e desnazificação e assegurar que Kiev não insiste na adesão à NATO, o que Moscovo considera parte das suas garantias vitais de segurança nacional.
O Kremlin critica há vários anos fortemente o avanço da NATO para junto das suas fronteiras, agregando os antigos membros do Pacto de Varsóvia, organização que também colapsou com a extinção da URSS, em 1991.
Moscovo visa ainda garantir o reconhecimento de Kiev da soberania russa da Península da Crimeia, invadida e integrada na Rússia, depois de um referendo, em 2014, e ainda a independência das duas repúblicas do Donbass, a de Donetsk e de Lugansk, de maioria russófila, que o Kremlin já reconheceu em Fevereiro, tendo acrescido a esta reivindicação as províncias de Kherson e Zaporijia, depois da realização de referendos que a comunidade internacional, quase em uníssono, não reconhece.
Do lado ucraniano, a visão é totalmente distinta e Putin é acusado de estar a querer reintegrar a Ucrânia na Rússia como forma de reconstruir o "império soviético", que se desmoronou em 1991, com o colapso da União Soviética.
Kiev insiste que a Ucrânia é una e indivisível e que não haverá cedências territoriais como forma de acordar a paz com Moscovo, sendo, para o Presidente Volodymyr Zelensky, essencial o continuado apoio militar da NATO para expulsar as forças invasoras.
A organização militar da Aliança Atlântica está a ser, entretanto, acusada por Moscovo de estar a desenrolar uma guerra com a Rússia por procuração passada ao Exército ucraniano, o que eleva, segundo o ministro dos Negócios Estrangeiros da Rússia, Sergei Lavrov, o risco de se avançar para a III Guerra Mundial, com um confronto directo entre a Federação Russa e a NATO, que tanto o Presidente dos EUA, Joe Biden, como o Presidente Vladimir Putin, da Rússia, já admitiram que se isso acontecer é inevitável o recurso ao devastador arsenal nuclear dos dois lados desta barricada que levaria ao colapso da humanidade tal como a conhecemos.
Esta guerra na Ucrânia contou com a condenação generalizada da comunidade internacional, tendo a União Europeia e a NATO assumido a linha da frente da contestação à "operação especial" de Putin, que se materializou através de bombardeamentos das principais cidades, por meio de ataques aéreos, lançamento de misseis de cruzeiro e artilharia pesada, e com volumosas colunas militares a cercarem os grandes centros urbanos do país, mas que agora está concentrada no leste e sudeste da Ucrânia.
Na reacção, além da resistência ucraniana, Moscovo contou com o maior pacote de sanções aplicadas a um país, que está a causar danos avultados à sua economia, sendo disso exemplo a queda da sua moeda nacional, o rublo, que chegou a ser superior a 60%, embora já tenha, entretanto, recuperado.
Estas sanções, que já levaram as grandes marcas mundiais a deixar a Rússia, como as 850 lojas da McDonalds, a mais simbólica, abrangem ainda os seus desportistas, artistas, homens de negócios, a banca e grande parte das suas exportações, ficando apenas de fora o sector energético, do gás natural e em pate do petróleo...
Milhares de mortos e feridos e mais de 6,5 milhões de refugiados nos países vizinhos da Ucrânia são a parte visível deste desastre humanitário.