Com a África Ocidental a ser, nos últimos anos, a fornalha continental dos golpes e intentonas, a UA, que esteve reunida em Cimeira, no Sábado, em Adis Abeba, Etiópia, apontou baterias para esta geografia africana em cujo mapa estão assinaladas tentativas de golpes militares e consumadas mudanças de poder pela força das armas em vários países.
São disso exemplos o Mali, Burkina Faso, República da Guiné (Guiné-Conacri), todos consumados, ou ainda no Sudão, mesmo que já fora desta sub-região, e ainda na Guiné-Bissau e na Gâmbia, nestes últimos dois casos os "putsh" falharam.
Depois de décadas, na segunda metade do século XX, onde os golpes se repetiam a uma velocidade tal que era comum haver vários países onde estes estavam a decorrer em simultâneo, o continente africano conheceu, já no século XXIm uma redução global de casos de intentonas falhadas ou consumadas que alguns analistas já admitiam que esse período vergonhoso de África estava arrumado no caixote indigno da sua história recente.
Mas não estava. Com casos marcantes a despontar em países como o Sudão, onde Omar al-Bashir foi deposto em 2019, ao fim de quase 30 anos no poder que exerceu com mão-de-ferro, ou em 2017, na Gâmbia, onde Yahya Jammeh caiu depois de derrotado nas urnas com um resultado claro que, posteriormente, procurou subverter através de uma ala fiel do Exército, primeiro, e depois com uma sucessão de episódios violentos gerados pela avidez de chegar ao poder pela forma a repetirem-se a um ritmo alucinante já com a segunda década deste século à porta.
Numa cronologia de sangue, os golpes foram-se seguindo, do Mali à Guiné-Conacri, da Etiópia, onde os rebeldes de TIgray ainda estão a procurar chegar a Adis Abeba para depor o primeiro-ministro e Prémio Nobel da Paz de 2019, Abiy Ahmed, ao Burkina Faso... tendo o pequeno mas turbulento país lusófono da África Ocidental, a Guiné-Bissau chegado por último a esta lista, embora apenas na forma de tentativa, que tem a particularidade de poder conter um elemento bizarro, que é a possibilidade admitida pelo Presidente Sissoco Embaló de envolvimento do narcotráfico nesta intentona ou ainda dos rebeldes de Casamança, uma região do sul do Senegal onde o movimento independentista MFDC há décadas que desestabiliza a região que faz fronteira com a antiga colónia portuguesa.
Mas a lista soma e segue pelo Níger, Chade ou Zimbabué, outros dos países com episódios de tentativas consumadas de assomar ao poder pela via das armas.
A resposta continental
Face a este cenário, oíderes da União Africana condenaram de forma inequívoca e unânime a recente vaga de golpes de Estado no continente, tendo isso mesmo sido o ponto mais sublinhado da Cimeira de Chefes de Estado e de Governo que ocorreu na sede da UA em Adis Abeba, a capital de um dos países onde desde Novembro de 2020 decorre um violento conflito armado que já vez milhares de mortos e dezenas de milhares de deslocados, criando uma das mais graves crises humanitárias actualmente em todo o mundo.
O comissário pan-africano para os Assuntos Políticos, Paz e Segurança da organização sublinhou isso mesmo numa conferência de imprensa após o conclave pan-africano.
"Os líderes africanos condenaram inequiovocamente este ressurgimento de golpes e tentativas de mudanças inconstitucionais de Governos", sublinhou Bankole Adeoye, citado pelas agências, aproveitando para reafirmar a política oficial da organização, plamasmada na Carta Africana, princípio que é seguido, quase sem excepção, pelas organuzações sub-regionais, como a Comunidade Económica de Estados da África Ocidental (CEDEAO).
E o momento foi aproveitado pela reafirmar o que a UA tem em curso desde 2010, decisão tomada na sua 14ª Cimeira, que é a política de intolerância zero para com os golpes de todo o tipo, com a definição clara, traduzida para os documentos oficiais, de acções punitivas para com todos os golpistas e para com os países e ou organismos que dêem "guarida" formal aos seus autores.
E isso foi agora reafirmado, tendo este responsável lembrado que actualmente estão quatro países suspensos de todos os trabalhos na UA: Mali, Guiné-Conacri, Sudão e Burkina Faso".
Mas a verdade é que, como sublinharam alguns analistas africanos nestes últimos meses, a decisão firme tomada em 2010 foi sendo aligeirada anos após ano, com a diluição da dureza das sanções, embora sub-regionalmente tenha sido mantida a política da suspensão dos países onde estes golpes têm lugar de forma efectiva.
Mas desde esse ano que uma alteração ligeira à acção contra os golpes foi introduzida, que foi a possibilidade de sanções aos países ou organizações instigadoras dessas intentonas, conforme está sublinhado nesta nova tolerância zero para os putshistas.
Outra alteração, embora mais sublime, foi sobre a prática antidemocrática interna, que, mesmo sem recurso a golpes, permita a manutenção indefinida do poder por "violação de regras democráticas com persistência e recorrência das quais resultem inconstitucionalidades".
E isso mesmo é, apesar de reforçado periodicamente, o que está plasmado na Carta Africana da Democracia, Eleições e Governação.
Formas distintas de olhar para estes golpes
Mas esta sucessão de golpes no século XXI tem uma distinção que pode gerar debate e dificuldades para os governos democraticamente eleitos e conforto, mesmo que circunstancial, para os golpistas, porque, ao contrário da sucessão de golpes da segunda metade do século XX, agora parece haver uma forte adesão das populações aos governos putshistas.
Outro factor por detrás desta aparente simpatia popular por golpes inconstitucionais deve-se ao facto de a gigantesca maioria da população africana ser muito nova, com uma média de idades a rondar os 20 anos em muitos destes países, como o Burkina Faso, onde o risco e o medo de ser cooptado pelas forças armadas para combater os grupos de radicais islâmicos leva a este tipo de comportamento.
O mesmo no que diz respeito à impopularidade de governos de países a atravessar severas crises e desemprego galopante, onde a camada da população mais jovem é a mais afectada...
Isso mesmo ficou claro quando, em Setembro de 2021, um grupo de soldados derrubou o Presidente Alpha Condé e, de imediato, as ruas de Conacri se encheram de populares dando vivas aos golpistas, tendo por trás uma crise económica severa e crescentes dificuldades para as famílias sobreviveram com o mínimo essencial.
Foi igualmente assim em Ouagadougou, no final de Janeiro deste ano, quando o poder no Burkina Faso foi alterado com a deposição de Roch Kaboré, com os mesmos milhares de pessoas nas ruas a apoiar o golpe militar, mas desta feita porque o Governo se mostrava incapaz de lidar com os permanentes ataques jihadistas no norte do país com milhares de mortos e deslocados registados sem que parece-se que estivesse a ser resolvido o problema.
Mas já tinha sido assim quando, em 2019, Omar al-Bashir foi derrubado num contexto de forte contestação popular com uma crise geral em pano de fundo mas cuja ignição foi um impactante aumento do preço do pão.
Alguns especialistas admitem que esta "novidade" em relação ao passado é fruto de uma maior informação disponível por parte das populações, com cada vez maior acesso à informação online e a redes sociais que são para as revoluções como o capim para o fogo nas savanas.
E, depois, os militares, que estão igualmente informados dos sentimentos das populações, estão-se a mostrar mais receptivos em alinhar nestas alterações à ordem constitucional justificando esse envolvimento com a sua obrigação de estar ao lado do povo sofredor devido à má governação de civis, mesmo que eleitos democraticamente.
Também as questões como a corrupção são hoje melhor percepcionadas pelas populações como um dos factores que estão por detrás das condições de vida difíceis que têm e que conduz a cenários de maior aceitação, e mesmo apoio, a movimentos golpistas de natureza militar, vistos, em algumas circunstâncias, como o garante da vontade popular