Analisemos algumas das manifestações desta policrise, começando pela corrupção. As percepções da sociedade indiciam que a corrupção está a atingir cada vez mais sectores e com maior profundidade, e só não apresenta os contornos do passado porque o pote de mel é menor. Ouvi opinião idêntica de um antigo membro do Bureau Político, considerado um histórico do MPLA. Enquanto o MPLA não tiver vontade e capacidade para discutir abertamente o assunto, sem tabus, o cancro expandirá as suas metástases e o resultado irá ser ainda mais nefasto do que é hoje. Em 2018 a percepção da impunidade, fortemente influenciada pela actuação da comunicação social pública, ficou abalada e registou-se um relativo avanço na contenção de práticas danosas. Se houvesse vontade de combater efectivamente a corrupção, a comunicação social pública teria de jogar outro papel que não o elogio de feitos perpetrados por gente no mínimo suspeita de práticas de corrupção.
A segunda manifestação da policrise é o panorama económico e social sombrio que se vive sem que se vislumbre uma saída para a situação, minando a já pouca confiança dos cidadãos. Com uma inflação de 20% a sufocar a população, quase ninguém acredita que ela possa abrandar até 15% no final do ano, como acredita o Executivo; com uma taxa de crescimento do PIB para 2024 que oficialmente será de 3%, abaixo da taxa de crescimento demográfico, o que desde logo significa um empobrecimento da população, mas que segundo as previsões de várias agências internacionais poderá ser de apenas 1,5%; com uma espécie de quase "laissez faire" em relação à dívida do Estado para com o sector privado, que está a arruinar micro e pequenas empresas que poderiam contribuir para a melhoria da vida nos municípios e para o combate ao desemprego, que nas cidades já chegou a 38,5%; com o investimento estrangeiro desmotivado pela instabilidade cambial e fiscal e pela poderosa burocracia, havendo, nas palavras do presidente da Câmara de Comércio Angola -Estados Unidos, muitos empresários americanos a abandonar, ou a querer abandonar, o País, o que faz pensar no que dirão eles aos seus compatriotas que estão a chegar; perante o insucesso ou as vicissitudes de programas governamentais como o PRODESI, o PREI e outros, ao mesmo tempo que as esperanças na ideia irrealista do Planagrão se vão esfumando sem que se saiba se já teve início (nunca mais se falou dos estudos que estariam a ser feitos pelo extinto Ministério da Economia e Planeamento nem dos outros Plana"s), se está em curso ou se já se considera mais um caso de insucesso; perante a ameaça de que se fala das exigências da China de pagamento de parte da dívida em Março; perante o crescente descontentamento e preocupação pelo domínio da economia por parte de estrangeiros, perante tudo isso, os angolanos ficaram atónitos ao não ouvirem uma que fosse, ideia ou estratégia inclusa na chamada Agenda Política do MPLA para 2024.
Em terceiro lugar, tenho de referir a crise institucional. Desde logo o descrédito do poder judicial pela sua dependência do poder político permanentemente sob nuvens de suspeição que são um dos maiores entraves ao investimento externo e com ilegalidades e irregularidades denunciadas, mas nunca desmentidas ou esclarecidas. Associado à inépcia das instituições públicas, por carência de capacidades humanas e recursos financeiros, mas também por ausência de sentido de serviço público e até patriótico, o que transforma responsáveis em adversários do sector privado que deviam orientar, quando uma acção não gera oportunidade para ganhos pessoais. Inépcia que resulta das escolhas para preenchimento de lugares, incluindo os mais simples, que estão ancoradas na militância partidária, no nepotismo e no controlo securitário. O slogan "O MPLA é o Povo e o Povo é o MPLA" coartou a autonomia dos cidadãos, tornando-os reféns de burocratas que se julgam os guias iluminados do povo, não deixando ao povo qualquer oportunidade para que possa assumir a sua cidadania.
Finalmente, a manifestação de crise política que, dado o modo de produção do político em Angola, está indissoluvelmente ligada ao MPLA. Trata-se de uma crise que acompanha, de certo modo, a crise dos partidos tradicionais a nível mundial, quer das democracias liberais, quer de outros regimes, e a crise dos partidos-movimentos de libertação da África Austral, crises geradas por demasiadamente longos períodos no poder propiciadores de elevados níveis de corrupção e que estão a abrir caminho a aventuras populistas e com carácter fascizante. O MPLA acompanhou naturalmente essa onda de crises e não tem sabido lidar com elas, dada a sua desorientação ideológica. Continuando a reclamar-se social-democrata e a integrar a Internacional Socialista, assume-se cada vez mais como um partido de direita e populista na prática, mas não pode denunciar o sistema porque ele próprio representa o sistema.
No poder há 48 anos, o MPLA é um partido envelhecido e sem ideias - e isso ficou uma vez mais demonstrado na agenda política para 2024. É um partido exausto que não consegue arranjar alternativas para as rotinas que substituem o trabalho político. Refugia-se nas efemérides, nos comunicados da direcção, frequentemente tratando de assuntos banais e nas reuniões onde é fácil perceber, pela sua duração, que há pouca discussão. O partido abandonou o marxismo, mas não a principal fraqueza do leninismo, o pernicioso centralismo democrático que impede ou limita a participação e a opinião livre, dado o carácter sagrado do pensamento e da palavra do líder. Não admira que esteja a perder a sua base social, principalmente nos centros urbanos.