Há alguma razão em particular para que o Jean-Michel mantenha o ano de 1977 como um marco delimitativo para compreensão do fenómeno político que é o MPLA?

A história de Angola deu uma reviravolta nessa data. O 27 de Maio de 1977 marca o "antes" e o "depois" do processo revolucionário angolano. Antes, houve a luta armada, complexa e estilhaçada, como sabemos, entre três movimentos de libertação. Ocorre depois aquele momento histórico em que o Presidente Neto proclamou, num gesto de desafio aos Acordos de Alvor, a independência de Angola. A alegria iria durar pouco tempo. O 27 de Maio de 1977 quebrou o semblante de unidade do partido-Estado. O "depois" disto é uma sociedade angolana assombrada ao longo de décadas por esta tragédia. De seguida, verificou-se a opção política radical, marxista-leninista, que iria desunir mais a sociedade angolana, e alienar do MPLA alguns dos seus sectores mais importantes. Portanto, 1977 é um ano duplamente referente na história pós-colonial de Angola e do próprio MPLA.

Esse fenómeno teria influenciado de tal modo os "camaradas" que a partir dessa data o MPLA reinventou-se para daí emergir um novo reposicionamento perante a sua própria memória?

O MPLA deixou de ser o mesmo que era no tempo da adesão popular intensa, entusiasta do pós-25 de Abril de 1974 [...]. Passou a ser temido, ao contrário do MPLA do período de transição, o do Poder Popular, da Juventude entusiasta, que estava a desabrochar na vida política. O medo instalou-se [...]. Apercebi-me disto, muitos anos depois, quando iniciei a minha pesquisa nos anos 1990 [...]. Falar do 27 de Maio era um assunto temeroso, assombroso [...]. Em alguns casos, fecharam-me portas e recusaram atender-me quando pedi para falar sobre este evento trágico. Se o MPLA procurou reinventar-se, acredito que sim. No entanto, reinventou-se de uma forma que implicou mais exclusões. A primeira grande reinvenção ocorreu a seguir ao primeiro Congresso do partido, em Dezembro de 1977, com a criação (nada consensual, mesmo no seio do próprio partido, é bom sublinhá-lo e mostro isto no meu livro) do Partido do Trabalho, e a decisão de se optar pelo modo de produção socialista. E com a adopção subsequente da ideologia marxista-leninista como suporte filosófico desta opção, o MPLA acabou abrindo uma nova e maior fissura com a sociedade angolana como um todo. Angola é um País largamente cristão, a bem ou a mal. Uma herança colonial. Uma opção política e ideológica desta natureza acabou alienando do MPLA largos sectores da sociedade angolana. É verdade que mais tarde, mormente a partir dos anos 1990, oportunismos meramente seculares e materiais acabaram por levar alguns sectores deste mundo cristão a tecer novas e oportunistas alianças com o MPLA. Mas estávamos numa era de deriva acentuada de valores morais e sociais [...]. O neoliberalismo era a nova ideologia política, quiçá uma nova religião [...]. Parte do mundo eclesiástico não escapou a essa deriva. Mas o próprio MPLA já não era, de longe, guardião dessa moral social... Ninguém se chocava com nada.

Quarenta e um anos depois, o que pensa que continua a constituir o grande handicap para uma abordagem mais próxima da "verdade"?

O problema da memória do 27 de Maio 1977 é que a questão das responsabilidades da repressão ainda está por resolver, e coloca o próprio partido numa situação inconfortável. A questão não é essencialmente política. Ela abarca questões emocionais e identitárias. Sei que filhos de figuras-chave que foram executados a seguir a este evento, hoje adultos, querem saber o que aconteceu aos seus pais e mães. Sei também que alguns, adoptados, nem sabiam que seus verdadeiros progenitores tinham sido apanhados e mortos num evento, hoje em dia, ainda tabu na vida política da Angola pós-colonial. Cada um de nós pode tentar colocar-se no lugar desses meninos, hoje adultos [...]. Como nos sentiríamos? Ou seja, que há pedidos de "prestação de contas" quer do foro judicial, quer meramente humanitário, que colocam o MPLA perante uma situação delicada, e perante si próprio, perante as suas próprias responsabilidades históricas neste drama. A questão que se coloca hoje em dia é: até quando se vai evitar "pegar o touro pelos cornos" e procurar organizar uma conversa nacional sobre este drama? Uma espécie de comissão da verdade e reconciliação sobre o maior drama de sempre das lutas internas do MPLA, mas com consequências nacionais? Digo nacionais, e não partidárias, pois o drama atingiu a sociedade angolana como um todo, e não apenas o MPLA como partido. A bola tem continuamente estado do lado da direcção do Partido. As reacções deste a cada comemoração do 27 de Maio mostram que existem poucas hipóteses de isto vir a ser discutido um dia, num futuro breve. Ninguém ousa tal desafio no seio das estruturas do partido. Mas como a geração dos dirigentes que viveram o 27 de Maio vai desaparecendo aos poucos, receio que deixem esta "batata quente" para os jovens dirigentes, alguns ainda não tinham sequer nascido, ou eram apenas "Pioneiros" ou da "Jota" no momento dos eventos. Ou seja, para pessoas sem nenhuma culpa no cartório nesse evento, e que correm agora o risco político de, um dia no futuro, ter de prestar contas sobre um assunto a propósito do qual eles não têm nem responsabilidade nem conhecimento real dos factos a não ser por terceiros.

Nesta nova edição de O MPLA Perante Si Próprio, sobretudo o capítulo sobre o 27 de Maio ganha "novas desenvolturas" devido ao acesso a algumas fontes (que se vão abrindo). Pensa que o facto de o MPLA ter feito veicular uma informação (estamos lembrados da edição do jornal do Partido Comunista Português, AVANTE, com um suplemento que dava conta da versão oficial) permitiu o branquear da situação, e por este facto o MPLA receia hoje que a sua imagem saia beliscada na história do país?

Como disse mais acima, quando iniciei, nos anos 1990, a pesquisa para este trabalho, falar do 27 de Maio era ainda muito arriscado, tanto para o entrevistador como para o entrevistado. As memórias ainda estavam muito vivas e sofridas. E sobretudo o medo ainda pairava sobre algo que afectou de modo tão violento o país como um todo. Passaram muitas águas debaixo das pontes, e há mais à-vontade sobre o tema. Antigos inculpados e encarcerados a seguir a esse evento começaram a falar, quer no foro cívico (como o caso da "Associação 27 de Maio"), quer mediante a publicação das suas memórias, além de publicações estrangeiras sobre este tema. Portanto, isto ajudou muito a revisitar de modo mais sereno esta questão.