Inesperadamente, o secretário de Estado norte-americano, Antony Blinken, que tutela a diplomacia de Washington, disse nas últimas horas que os Estados Unidos estão a trabalhar para o sucesso ucraniano nesta contra-ofensiva porque isso significaria duas coisas: "conseguir para Kiev uma posição vantajosa na mesa das negociações" e levar o Presidente russo a "repensar o seu plano e concluir que o melhor será negociar".

Naquilo que é claramente uma mudança de agulha nos objectivos dos aliados de Kiev, que, no que é essencial, obedecem às directrizes norte-americanas, pode-se depreender alguma fragilização da capacidade militar ucraniana, embora Blinken tenha igualmente sublinhado que "ainda é cedo para fazer um balanço do resultado da contra-ofensiva".

Macron, Scholz e Duda sintonizados com Washington

Alias, há já mesmo posições entre os principais aliados da Ucrânia que apontam para uma lenta evolução da contra-ofensiva para o estado natural do conflito, como o admitiu o Presidente francês, Emmanuel Macron, quando diz que esta "contra-ofensiva pode durar várias semanas ou meses".

Para Isso, e depois de alguns dos assessores do Presidente ucraniano, Zelensky, terem vindo a público admitir que as forças ucranianas vão precisar de "muitos mais carros de combate ocidentais" devido às perdas sentidas nestes dias, Macron defende agora que vai ser necessário manter o fluxo de armas para Kiev.,

Num encontro entre Macron, o chanceler alemão OLaf Scholz, e o Presidente polaco, Adrzej Duda, o francês acrescentou que durante esses meses vindouros de duração desta ofensiva ucraniana, o apoio ocidental manter-se-á dentro dos limites definidos pelos aliados.

Também Macron, em nome dos três, que se reuniram na capital francesa, sublinhou a ideia avançada pelo norte-americano Antony Blinken, que passa por admitir que vai ser necessário transitar para as negociações e que o objectivo é agora conseguir para Kiev a melhor posição negocial possível.

Para isso, disse ainda o Presidente francês, os países da NATO vão ter de manter os carregamentos de armas para os ucranianos, o mesmo que Scholz pensa, que passa por apoiar Kiev durante o tempo que for preciso, mas agora já sem uma limitação desse apoio até à derrota da Rússia, mas incluindo agora um cenário de pós-conflito, inclusive as garantias de segurança para o futuro.

Bradley Avenue

Facto é que as perdas substanciais de equipamento militar pelos ucranianos nestes primeiros dias de ofensiva em larga escala, sem que tenham sequer atingido a primeira linha defensiva russa, como têm sublinhado alguns dos mais sérios analistas militares ocidentais, entre estes o major general Agostinho Costa, ouvido pela RTP3 e CNN Portugal, começa a ganhar foro de incómodo entre os mais importantes aliados de KIev.

Entre as vítimas da artilharia, drones e aviação russa estão dezenas de veículos blindados fornecidos a Kiev pelos países da NATO, desde os ligeiros Bradley norte-americanos aos pesados Leopard 2 alemães, passando por dezenas de carros de transporte de tropas e peças de artilharia, como os Caeser franceses ou os M777 "Made in USA".

Esta situação, que envolve uma gigantesca e trágica perda de vidas humanas, que é o mais pesado e lamentável efeito do conflito, tanto do lado russo como do lado ucraniano, embora nesta ofensiva, como sempre sucede nestas circunstâncias, as perdas estejam a ser largamente superiores do lado de quem ataca, levou mesmo a uma alteração que ainda não tinha sido vista nestes quase 16 meses de guerra, que foi os media norte-americanos mainstream a admitirem perdas dramáticas do lado das forças de Kiev.

Entre os media de "combate" russos, nomeadamente os bloggers de guerra, que começou a passar para os media tradicionais, foi criada mesmo uma denominação curiosa para o contexto dos combates na frente de Zaporizhia, a "Bradley Avenue" ou "Avenida Bradley", para dar corpo à ideia de que estes veículos blindados de infantaria dos EUA, que ganharam fama no Iraque, estão ali a ser abatidos uns atrás dos outros.

A criação desta zona de atrito principal entre forças mecanizadas saiu do colapso da barragem de Kakhovka, que inviabilizou o avanço surpresa das forças ucranianas pelo sul, rumo à Crimeia, obrigando as brigadas de Kiev a concentrar o avanço na zona mais a leste, de Zaporizhia, onde, de facto, a Rússia esteve quase um ano a erguer linhas defensivas em camadas, desde os campos minados às trincheiras elevadas passando pelas filas de "dentes de dragão" anti-carro de combate e a desenhar coordenadas precisas para a concentração de fogo de artilharia à passagem das unidades ucranianas.

E até os media norte-americanos, como a CNN International ou The New York Times, embora menos efusivos, começam a admitir que estas perdas estão a atingir o limite do sustentável se se quiser pensar numa continuação da contra-ofensiva até que os ganhos no terreno, onde os ucranianos concentraram as suas principais unidades de choque para tentar abrir uma brecha na muralha defensiva russa, sejam visíveis.

Para já, pouco se viu nestes dez dias de contra-ofensiva, iniciada a 04 de Junho mas que o Presidente Zelensky apenas admitiu este fim-de-semana que passou, tendo Kiev como melhor resultados, escassos, apesar de os media ocidentais insistam em fazer manchetes por cada pequena aldeia retomada, a soma de cinco aldeias na região de Zaporizhia ao seu controlo, cuja importância está claramente a ser exacerbada face à falta de outros sucessos.

Além destes pequenos cantos retomados, a Ucrânia terá conseguido, provavelmente, como melhor conquista as garantias que começam a ser anunciadas pelos seus aliados da NATO sobre a necessidade de dar garantias de segurança e um "road map" para o futuro do país no pós-conflito já na Cimeira prevista para Junho em Vilnius, capital da Lituânia.

Além disso, tendo esta notícia chegado ao ocidente através dos bloggers de guerra russos, os ucranianos, com recurso a um míssil britânico, storm shadow, matou um famoso e importante general, considerado um pilar do comando russo na frente de batalha, Sergei Goryachev.

O general Sergei Goryachev é um famoso oficial que comandou as forças russas na Transnistria, região independentista da Moldova, e comandava actualmente o 35º Exército de Armas Combinadas da Federação Russa em Zaporizhia, que desempenha um papel fulcral na manobra de Moscovo e onde a Ucrânia busca conseguir uma brecha estratégica na muralha defensiva dos "ocupantes".

Biden cancela encontro com chefe da NATO

Embora ainda não se saiba o impacto que esta situação possa ter no futuro imediato do apoio ocidental a Kiev, aquela que estava a ser encarada como uma reunião importante para a continuidade do suporte ocidental aos ucranianos, foi cancelada pelo Presidente dos EUA, Joe Biden.

Alegando problemas de saúde, Joe Biden, que devia receber esta segunda-feira, 12, na Casa Branca, o secretário-geral da NATO, Jens Stoltenberg, cancelou esse encontro, alegadamente devido a uma complicação menor após uma intervenção cirúrgica a um dente, tendo, todavia, os seus serviços de assessoria de imprensa garantido que está tudo com o Presidente.

Além do conflito em curso no leste europeu, que os analistas, incluindo elementos próximos dos norte-americanos, admitem que se não correr bem para a Ucrânia, pode comprometer o prestígio internacional de Biden, dos EUA e da NATO, os dois homens deveriam discutir a questão da substituição do actual líder da organização militar ocidental, cujo mandato termina em Novembro deste ano e cujo sucessor terá de estar encontrado até à Cimeira da organização em Vilnius, Lituânia, no próximo mês.

Mas a questão que deve ocupar mais as mentes de Biden e Stoltenberg, este último com especial peso nesta equação por ser, desde o início, o mais inflamado defensor da imposição de uma "derrota estratégica" aos russos no campo de batalha, tal como o defenderam o secretário da Defesa norte-americano, Lloyd Austin, e a presidente da Comissão Europeia, Ursula Leyen, é a possibilidade, e embaraço, se suceder, do insucesso ucraniano.

Isto, porque não é apenas a capacidade ucraniana de combater que está a ser posta à prova, é também o equipamento militar ocidental, do mais moderno que os países da NATO, individualmente, possuem, que estaria a soçobrar face ao equipamento russo.

O que daria corpo à ideia que começa a surgir entre os analistas pró-russos, de que os EUA e a NATO só demonstram clara superioridade em conflitos onde enfrentam forças claramente inferiores e escassamente equipadas, desde o Iraque ao Afeganistão, ou mesmo na antiga Jugoslávia, na década de 1990, e na Líbia, em 2011.

Contexto da guerra na Ucrânia

A 24 de Fevereiro de 2022 as forças russas iniciaram a invasão da Ucrânia por vários pontos, tendo o Presidente russo dito que se tratava de uma "operação militar especial", sublinhando que o objectivo não era (é) a ocupação do país vizinho, condição que evoluiu depois para a anexação de territórios no Donbass mas também as regiões de Kherson e Zaporijia, mas sim a sua desmilitarização e desnazificação e assegurar que Kiev não insiste na adesão à NATO, o que Moscovo considera parte das suas garantias vitais de segurança nacional.

O Kremlin critica há vários anos fortemente o avanço da NATO para junto das suas fronteiras, agregando os antigos membros do Pacto de Varsóvia, organização que também colapsou com a extinção da URSS, em 1991.

Moscovo visa ainda garantir o reconhecimento de Kiev da soberania russa da Península da Crimeia, invadida e integrada na Rússia, depois de um referendo, em 2014, e ainda a independência das duas repúblicas do Donbass, a de Donetsk e de Lugansk, de maioria russófila, que o Kremlin já reconheceu em Fevereiro, tendo acrescido a esta reivindicação as províncias de Kherson e Zaporijia, depois da realização de referendos que a comunidade internacional, quase em uníssono, não reconhece.

Do lado ucraniano, a visão é totalmente distinta e Putin é acusado de estar a querer reintegrar a Ucrânia na Rússia como forma de reconstruir o "império soviético", que se desmoronou em 1991, com o colapso da União Soviética.

Kiev insiste que a Ucrânia é una e indivisível e que não haverá cedências territoriais como forma de acordar a paz com Moscovo, sendo, para o Presidente Volodymyr Zelensky, essencial o continuado apoio militar da NATO para expulsar as forças invasoras.

A organização militar da Aliança Atlântica está a ser, entretanto, acusada por Moscovo de estar a desenrolar uma guerra com a Rússia por procuração passada ao Exército ucraniano, o que eleva, segundo o ministro dos Negócios Estrangeiros da Rússia, Sergei Lavrov, o risco de se avançar para a III Guerra Mundial, com um confronto directo entre a Federação Russa e a NATO, que tanto o Presidente dos EUA, Joe Biden, como o Presidente Vladimir Putin, da Rússia, já admitiram que se isso acontecer é inevitável o recurso ao devastador arsenal nuclear dos dois lados desta barricada que levaria ao colapso da humanidade tal como a conhecemos.

Esta guerra na Ucrânia contou com a condenação generalizada da comunidade internacional, tendo a União Europeia e a NATO assumido a linha da frente da contestação à "operação especial" de Putin, que se materializou através de bombardeamentos das principais cidades, por meio de ataques aéreos, lançamento de misseis de cruzeiro e artilharia pesada, e com volumosas colunas militares a cercarem os grandes centros urbanos do país, mas que agora está concentrada no leste e sudeste da Ucrânia.

Na reacção, além da resistência ucraniana, Moscovo contou com o maior pacote de sanções aplicadas a um país, que está a causar danos avultados à sua economia, sendo disso exemplo a queda da sua moeda nacional, o rublo, que chegou a ser superior a 60%, embora já tenha, entretanto, recuperado.

Estas sanções, que já levaram as grandes marcas mundiais a deixar a Rússia, como as 850 lojas da McDonalds, a mais simbólica, abrangem ainda os seus desportistas, artistas, homens de negócios, a banca e grande parte das suas exportações, incluindo o sector energético, do gás natural e em parte do petróleo...

Milhares de mortos e feridos e mais de 9,5 milhões de refugiados internos e nos países vizinhos da Ucrânia são a parte visível deste desastre humanitário.

O histórico recente desta crise no leste europeu pode ser revisitado nos links colocados em baixo, nesta página.