Brancos, negros, hispânicos, asiáticos... são milhões nas grandes e pequenas cidades dos 50 estados dos Estados Unidos, da Europa, da América do Sul, da Ásia, em África..., unidos num só propósito: acabar de vez com décadas e décadas de uma novela trágica onde os episódios se repetem de tempos a tempos, cada vez mais curtos: um polícia branco mata um negro e, de seguida, surgem os protestos com carros a arder e lojas pilhadas, para depois tudo voltar ao mesmo...
E é isso que muitos destes manifestantes querem acabar de uma vez por todas, como dizia uma jovem negra ouvida nas televisões norte-americanas: "Eu quero ter a certeza de que não é uma bala disparada por um polícia que vai impedir os meus filhos de serem avós".
Essa a razão para que as ruas estejam cheias há seis noites seguidas em todo o país, como nunca aconteceu antes.
Estes não são os mais violentos e destrutivos protestos que se seguiram à violência policial injustificável sobre um negro, porque isso aconteceu em 1992, depois do julgamento-farsa dos agentes que foram filmados a espancar Rodney King, em Los Angeles, mas são, seguramente os de maior abrangência e duração pelo menos desde a década de 1960.
Há mesmo autoridades municipais de cidades que estimam que os protestos se prolonguem pelos próximos 10 dias, antecipando medidas de prevenção, declarando recolher obrigatório até 10 de Junho, como é o caso de Seatle, ou com a deslocação de milhares de forças militares para as ruas, ou ainda, recorrendo a outras estratégias, colocando agentes da polícia a mostrar solidariedade em vídeos distribuídos nas redes sociais como forma de esbater a fúria contra a polícia, sendo disso exemplo a encenação de um pedido de perdão por dezenas de polícias que, em Nova Iorque ou na Florida, se ajoelharam perante a multidão...
Mas a realidade é que conta e esta resume-se a isto: são oito dias consecutivos, em todo o país, de protestos contra a morte de um negro de 46 anos, George Floyd, desarmado e sem quaisquer indícios de resistência à detenção, por um polícia branco, Derek Chauvin, de 44 anos, em Minneapolis, estado do Minnesota.
O polícia foi acusado de homicídio por negligência e os três colegas que estavam com ele foram expulsos da corporação, mas os milhões de manifestantes não acham que isso seja suficiente, porque o que está em causa não é a condenação de um homem, é a condenação de um sistema policial que, em relação aos negros, "primeiro dispara e depois é que pergunta".
O que se persegue como objectivo nas ruas é que os EUA gerem uma nova abordagem a este problema, que se criem novos instrumentos legais de forma a que não volte a acontecer e uma das ideias que percorre as redes sociais nos EUA por estes dias é que todas as despesas relacionadas com um acto violento da polícia sobre cidadãos indefesos e sem justificação sejam suportadas pelos fundos de pensões dos departamentos policias a que esses mesmos agentes pertencem.
Isto, porque se assim for, as consequências são partilhadas por todos e todos se vigiarão a todos para garantir que tal não volta a suceder.
Mas a resposta do Presidente Donald Trump não parece estar a seguir essa via, antes pelo contrário, o que o inquilino da Casa Branca está a trilhar como caminho é ameaçar os manifestantes com a colocação do Exército nas ruas, disparar a matar contra aqueles que pilham lojas e incendeiam viaturas, ou ainda dizer que todos aqueles que estão hoje a gritar por justiça nas praças dos EUA vão amanhã ser perseguidos judicialmente.
E a questão está a assumir contornos de maior radicalização porque toda a acção de Trump está virada para garantir que o apoio do seu eleitorado tradicional, mais conservador e religioso, não lhe foge nas eleições Presidenciais marcadas para Novembro, onde vai defrontar o Democrata Joe Biden que o tem acusado de ser "um líder de facção e não o Presidente dos EUA".
Por isso, na terça-feira, decidiu mandar as suas forças de segurança e os serviços secretos limpar a Avenida Pennsylvania, em Washington, onde está situada a Casa Branca, a sua residência oficial, que estava pejada de milhares de manifestantes, para a atravessar e ir à igreja no outro lado da via, onde ergueu uma Bíblia em direcção aos manifestantes, um gesto do agrado do seu eleitorado conservador.
O momento foi aproveitado pelo Democrata Joe Biden para lhe mandar um recado iminentemente político e de campanha eleitoral, elevando a questão para um nível mais denso politicamente: "Em vez de empunhar a Bíblia, o Presidente Trump devia antes procurar ler a Bíblia".
Entretanto, na moldura mais alargada deste movimento global face à violência policial contra os negros norte-americanos, sustentada com as iniciativas sociais geradas nas comunidades afro-americanas, como a "Black Lives Matter" ou ainda a mais recente, "I Can"t Breathe", ou seja, "a vida dos negros são importantes" ou "eu não consigo respirar", as derradeiras, a par de "mãe", palavras de Floyd quando a sua vida se desvanecia no asfalto de uma estrada de Minneapolis, continua a alargar-se a cada vez mais cidades do país e do mundo.
Por detrás deste recrudescer dos protestos está a convicção de que dificilmente a sociedade norte-americana terá outro momento tão propício para mudar de paradigma, para alterar a lei e a mentalidade que permita à sociedade mudar a forma como tem lidado com este problema de muitas décadas, que, na história do século XX ficou moldada de forma mais saliente pela forma brutal como foram mortos, às mãos de polícias brancos, alguns jovens negros que integravam os movimento cívicos e de luta pelos direitos civis nas décadas de 1950 e 1960.
Essa luta acabou por conduzir à famosa "Civil Rights Act - Lei dos Direitos Civis", de 1964, que foi proposta pelo Presidente John Kennedy, em 1963, mas, por ter sido assassinado, acabou por ser o seu sucessor, Lyndon Johnson, a pugnar pela sua aprovação.
Esta lei foi uma fronteira clara entre dois períodos distintos na história dos EUA, proibindo a discriminação racial, religiosa, cor ou origem geográfica, em ternos laborais, retirando quaisquer distinções raciais em matéria de emprego, voto, de ensino, de alojamento... nos Estados Unidos da América.
E o que os milhões de norte-americanos nas ruas exigem hoje é que a sociedade seja capaz de impor aos políticos uma ferramenta legislativa que tenha o mesmo tipo de influência para a mudança no quer toca ao uso da força policial contra as minorias que a Civil Rights Act teve contra a discriminação racial sobre os direitos civis a partir de 1964.