Valter Filipe sentiu-se mal na primeira sessão do julgamento, tendo sido necessária assistência médica no local. O ex-governador do BNA esteve internado durante toda a semana, segundo o seu advogado de defesa, que chegou mesmo a prever que o estado de saúde do seu constituinte poderia condicionar a sua presença neste processo, "uma vez que não há, no País, médico especialista para o tratar".
O excessivo calor dentro da sala de audiência devido a uma avaria nos aparelhos de ar condicionado tem sido criticado por todos quantos têm comparecido no julgamento.
Antes de ouvir o antigo governador do banco central, o Supremo vai ainda terminar a audição de António Samalia Bule Manuel, ex-diretor do Departamento Gestão de Reserva do BNA, que disse, na sexta-feira, que Valter Filipe tinha competência, nos termos da política de investimento que estava em vigor à data dos factos, de transferir até 500 milhões USD, contrariando a tese do Ministério Público (MP).
Durante o seu interrogatório, António Samalia revelou também que o na altura governador do banco central não submeteu os contratos a advogados internacionais antes de fazer a transferência, que seguiu sem qualquer garantia.
O réu, que também fez parte da delegação do BNA nas negociações em Londres, que resultou na transferência ilegal de 500 milhões de dólares norte-americanos para uma conta no Crédit Suisse em Londres antes das eleições gerais de 23 de Agosto de 2017, afirmou que Valter Filipe também era o administrador da área de Gestão de Reserva do BNA e "tinha, sim, competência para transferir os valores em questão".
As afirmações de António Samalia Bule Manuel não encaixam na tese defendida pelo MP que afirmou, no arranque do julgamento, que o antigo responsável do banco central, Valter Filipe, não tinha competências para autorizar a transferência de 500 milhões USD, e que essa competência era do Conselho de Administração do BNA.
O MP assegura, na acusação, que Valter Filipe, enquanto governador do BNA, usurpou as competências do Conselho de Administração, violando por isso as normas do banco central que atestam que os valores acima de um milhão de USD só podem ser executadas pelo Conselho de Administração.
António Samalia Bule Manuel, que é também especialista em mercado de capitais, explicou que só acima de 500 milhões USD é que o governador tem que recorrer ao Comité de Investimento do BNA para solicitar autorização.
"Na gestão das reservas, obrigações e outros activos, o governador pode movimentar até 500 milhões de USD. Isso está escrito nos termos da política de investimentos", disse o ex-director do Departamento de Gestão de Reservas do BNA.
De acordo com o antigo responsável, os valores transferidos seriam, segundo o acordo, devolvidos ao BNA no fim do prazo que estava estabelecido no contrato.
Neste caso, prosseguiu dizendo, "é uma transferência de activos para gestão. Ou seja, o dinheiro não sai da esfera do BNA, continua a fazer parte das reservas. E aí o governador pode transferir ou autorizar a transferência desses valores".
"Os 500 milhões USD que o BNA transferiu para conta de uma empresa no Crédit Suisse de Londres, em Inglaterra, retornariam ao País sem qualquer ónus para o Estado angolano", assegurou o ex-chefe das Reservas do BNA.
O antigo responsável pela Gestão de Reservas do BNA disse que, antes da assinatura do contrato, participou de duas reuniões separadas, em Londres. A primeira com os promotores e a segunda com juristas da Northon Ross (o escritório de advogados que presta assessoria ao BNA).
Questionado pelo juiz principal sobre que diligências foram realizadas antes da assinatura do contrato, António Manuel respondeu que a experiência orientava que fosse contactado o escritório de advogados Norton Rose, antes da sua consumação.
Nesse sentido, contou que contactou o escritório de advogados para uma reunião, ao que anuíram "prontamente", mas no encontro Valter Filipe não chegou a submeter o contrato à apreciação da equipa, porque alegadamente os promotores do investimento apresentaram "algumas reservas".
Instado pelo juiz a esclarecer que reservas foram apresentadas, António Samalia Bule Manuel disse que os promotores entendiam que não era o momento apropriado para abordar a Norton Rose, alegando a possibilidade de conflitos de interesse e de comprometer o sucesso da operação.
António Manuel, que era funcionário do BNA há nove anos, ressaltou que antes da assinatura do contrato, Valter Filipe escreveu ao então Presidente da República a informar dos passos que tinham sido dados e a solicitar autorização para firmar o contrato.
António Samalia Bule Manuel também confirmou que a assinatura do contrato, a 10 de Agosto de 2017, foi autorizada pelo ex-Presidente da República, em resposta a carta endereçada pelo então governador do BNA.
À pergunta sobre se existiam ou não garantias para a transferência dos 500 milhões de dólares, o réu respondeu que tecnicamente não existia, porque não havia títulos depositados na conta do BNA, acrescentando que os promotores apenas apresentaram uma ficha técnica.
O também economista de profissão é réu no processo por ter sido o técnico do BNA que executou a transferência dos 500 milhões USD para o exterior do País.
António Samalia Bule Manuel deixou claro que cumpriu apenas uma ordem directa do seu superior hierárquico, Valter Filipe.
Segundo o arguido, depois da assinatura do contrato referente à transferência dos 500 milhões USD, que foi a primeira parte de um pacote que seria de 1,5 mil milhões, o Departamento de Gestão e Reservas do BNA foi orientado pelo governador para cumprir todas as instruções do processo, visto que País obteria um financiamento de 30 mil milhões USD, que seriam posteriormente usados na realização de investimentos públicos e financiamento da dívida pública.
Questionado se é normal o governador do banco dar ordens verbais, o réu respondeu que é normal sim, desde que essas instruções tenham suportes, como foi o caso, e que essa prática acontece até hoje, no BNA e outras instituições.
No mesmo processo, para além de António Samalia Bule Manuel e Valter Filipe, estão a ser julgados José Filomeno dos Santos, filho do antigo Presidente da República José Eduardo dos Santos e Jorge Gaudens Pontes Sebastião.
Os arguidos estão implicados na transferência ilegal de 500 milhões de dólares norte-americanos do Banco Nacional de Angola (BNA) para uma conta no Credit Suisse, de Londres, Reino Unido.
A operação ocorreu antes das eleições gerais de 23 de Agosto de 2017 e foi travada pelas autoridades britânicas, que a sinalizaram como suspeita.
A transferência era uma espécie de pagamento avançado para uma empresa criada pelos arguidos a fim de montar uma operação de financiamento para Angola no valor de mais de 30 mil milhões de dólares.
O plano estabelecia a constituição de um suposto Fundo de Investimento Estratégico e na utilização da empresa Mais Financial Services, S.A. como instrumento de actuação.
O julgamento tem 11 declarantes e três testemunhas, com destaque para o ex-ministro das Finanças Archer Mangueira e o actual Governador do BNA, José de Lima Massano.