Enquanto Nuno Nabian, o primeiro-ministro nomeado por Embaló, ordenou aos funcionários públicos que voltassem na quarta-feira ao trabalho para retomar a normalidade no país, Aristides Gomes, o primeiro-ministro que não aceitou ser substituído, pediu aos funcionários do Estado para permanecerem em casa até que consiga resolver a crise institucional que a Guiné atravessa.
Para já, o impasse parece continuar, visto que alguns dos serviços públicos foram reabertos, na totalidade ou parcialmente, na quarta-feira mas com escassa frequência.
A explicação para esta aparente complexa esquizofrenia política é simples: Nuno Nabian era vice-presidente da Assembleia Nacional Popular (ANP) e, na passada semana, foi quem deu posse a Umaro Embaló, numa cerimónia que decorreu num hotel de Bissau, apesar de a Constituição não lhe dar poder para isso, mas com a garantia já de que os militares o apoiariam em caso de forte oposição.
E, assim que Embaló recebeu a faixa presidencial, nomeou de imediato Nabian para o cargo de primeiro-ministro, destituindo o até então primeiro-ministro Aristides Gomes, que, por sua vez, não aceitou ser demitido.
Isto, ao mesmo tempo que Cipriano Cassama, que era o Presidente da ANP, quem tinha o poder constitucional para empossar o novo Presidente da República - poder esse que apenas é passado ao seu vice em caso de força maior. O que não sucedia - assumiu o cargo de Presidente interino por não reconhecer a legitimidade da tomada de posse de Embaló.
Recorde-se que Cassama foi obrigado pelos militares, que o ameaçaram de morte, a deixar o cargo de Presidente interino, o que permitiu a Embaló apoderar-se com mais fôlego do cargo de Chefe de Estado.
Entretanto, Aristides Gomes, que também não reconhece Embaló como Chefe de Estado, disse, em comunicado enviado aos jornalistas, na quarta-feira, em Bissau, que está, com o seu Governo, a diligenciar para que a normalidade seja retomada o mais rapidamente possível.
No documento emitido pelo seu gabinete, Gomes sublinha que "em tempo oportuno" informará o momento em que terá lugar a retoma dos trabalhos na Guiné-Bissau.
"Que todos os funcionários públicos se mantenham em casa até à normalização da situação e oportunamente comunicará a data de retoma dos trabalhos", explicita.
Entretanto, Nuno Nabian, que se considera também primeiro-ministro legítimo, apesar de ter sido nomeado por um Presidente que tomou posse à margem da Constituição, diz, também numa comunicação ao país, que os problemas vão ser ultrapassados.
"Eu acredito na Guiné-Bissau, acredito que seremos capazes de ultrapassar as nossas divergências políticas e interpretar o voto popular, que não se cansa de insistir sobre a necessidade de encontrarmos fórmulas mais adequadas para uma partilha de poder", disse Nabian, na segunda-feira, quando foi empossado o seu Executivo.
E o primeiro-ministro acabou por, nesta frase, tocar no ponto, que é a questão da votação popular, cujos resultados ainda não foram legalmente confirmados pelo Tribunal Supremo e dificilmente o serão em breve porque as Forças Armadas tomaram as suas instalações de assalto, bem como outras instâncias judiciais guineenses, impedindo o seu funcionamento e, por conseguinte, o pronunciamento sobre os recursos pendentes.
Os militares tomaram ainda conta, pela força das armas, da rádio e da televisão públicas da Guiné-Bissau que, até hoje, permanecem mudas, embora a classe dos jornalistas tenha feito já diversos apelos para que as emissões sejam retomadas de imediato.
Relatos oriundos de Bissau dão conta de que grupos de militares fortemente armados estão a patrulhar a capital guineense e sempre que um dos mais destacados elementos dos partidos que se opõem a Embaló faz uma declaração que lhe desagrada, estes militares cercam as suas casas e ameaçam de forma clara a sua integridade física.
Fontes do Novo Jornal em Bissau que observam de perto o evoluir da situação admitem já que as Forças Armadas são quem está a segurar o autoproclamado Presidente e o futuro político do país vai depender do que decidirem as chefias militares, porque a organização sub-regional normalmente mais actuante em casos de desordem constitucional, a CEDEAO, parece estar a optar por um posicionamento de quem aguarda para ver para depois agir.
Entretanto, no Tribunal Supremo estão pendentes recursos colocados pela candidatura de Domingos Simões Pereira, líder do histórico Partido Africano da Independência da Guiné e Cabo Verde (PAIGC), nomeadamente sobre a ausência de resultados confirmados da maior parte dos círculos eleitorais da Guiné-Bissau.
O que retira a legitimidade da posse de Umaro Embaló e desligitima a nomeação de Nabian para primeiro-ministro, como, de resto, é o entendimento da Comissão Executiva da Comunidade Económica dos Estados da África Ocidental (CEDEAO).
Esta, em comunicado divulgado na terça-feira, considera que a tomada de posse de Umaro Sissoco Embaló ocorreu quando o contencioso sobre o desfecho das eleições Presidenciais continua pendente no Tribunal Supremo.
Esta tomada de posição do organismo sub-regional onde a Guiné-Bissau está inserida foi divulgada no dia em que se confirmou que as Forças Armadas guineenses assumiram uma posição em favor de Embaló, ameaçando de morte alguns dirigentes políticos, como o presidente da Assembleia Nacional Popular (ANP), Cipriano Cassama, e o primeiro-ministro, Aristides Gomes, obrigando-os a desistir dos cargos, embora só o primeiro tenha cedido à pressão dos militares.
No contexto geográfico da África Ocidental, a CEDEAO é o organismo com maior peso e influência e isso ficou provado quando, em Janeiro de 2017, numa crise parecida na vizinha Gâmbia, chegou a movimentar tropas para acabar com uma situação de desordem constitucional, podendo agora voltar a assumir as rédeas da resolução deste problema guineense.
A posição de Angola
Face a este imbróglio, mais um na Guiné-Bissau, o ministro das Relações Exteriores (MIREX) angolano, Manuel Augusto, durante a sua visita oficial ao Brasil, defendeu, naquilo que surge alinhado com os restantes membros da CPLP, que os actores políticos guineenses devem respeitar os preceitos constitucionais.
O MIREX acrescentou que esse respeito pela Constituição e pelas leis é a única via possível para que a Guiné-Bissau se reencontre com a normalidade institucional e possa empreender o caminho do desenvolvimento económico e social.
Após encontro, em Brasília, com o seu homólogo brasileiro, Ernesto Araújo, Manuel Augusto, em declarações aos jornalistas, deixou claro que o Governo de Luanda condena de forma inequívoca o recurso à violência como meio de resolver disputas eleitorais e defende como caminho único o diálogo.
E, naquilo que é um claro recado ao autoproclamado Presidente da Guiné-Bissau, Umaro Sissoco Embaló, o responsável pela diplomacia de Luanda disse que Angola só reconhecerá os resultados eleitorais quando estes forem confirmados em definitivo pelo Supremo Tribunal.
O MIREX lamenta aquilo que entende ser uma tentativa das novas autoridades guineenses em evitar que a justiça se pronuncie.
ONU prefere esperar pelo que diz a UA
Entretanto, as Nações Unidas, que ali manteve mais de duas décadas uma missão militar, a UNOGBIS, em consequência do conflito de 1998/99, e que hoje é a CEDEAO que tem esse papel, através da ECOMIB, veio agora dizer que aguarda por um pronunciamento dos países africanos, União Africana e CEDEAO, para emitir uma opinião sobre como resolver mais este problema gerado no pequeno país da África Ocidental, um gigante em criar confusão no continente.
"Estamos a fazer alguns arranjos, mas estamos à espera de que países africanos apresentem algumas ideias sobre como lidar" com a situação, disse o representante permanente da China junto da ONU e presidente do Conselho de Segurança no mês de março, Zhang Jun, citado pela Lusa.
Esta posição parece ser excessivamente cautelosa por parte da ONU quando em causa está a tomada de poder num país por vias à margem das leis e da Constituição do país, com uma clara intromissão das Forças Armadas na imposição da posição de uma das partes, o que configura uma tomada do poder ilegal, em acordo com a Carta Africana sobre esta matéria, onde está claramente plasmado que não são admitidos assaltos ao poder sem o respaldo constitucional.
No entanto, como lembra a Lusa, o programa do Conselho de Segurança para o mês de Março não inclui reuniões sobre a Guiné-Bissau, depois das reuniões de Fevereiro sobre a situação no país, mas Zhang Jun disse que "o programa não impede o Conselho de responder a novos desenvolvimentos ou novas tensões".
Recorde-se que a ONU tem feito da CEDEAO uma espécie de porta-estandarte do seu posicionamento sobre as tensões regionais, como foi o caso, em 2017, quando na vizinha Gâmbia ocorreu uma tentativa de golpe de Estado pelo Presidente cessante, Yahya Jammeh e esta organização chegou mesmo a colocar uma significativa força militar nas fronteiras do país para obrigar à reposição da ordem constitucional. O que veio a suceder.
União Europeia pondera sanções
Entretanto, em resposta a deputados europeus, os portugueses Carlos Zorrinho, enquanto presidente da delegação do Parlamento Europeu à Assembleia Parlamentar Paritária África-Caraíbas-Pacífico/UE, e Isabel Santos, coordenadora dos socialistas europeus no subcomité dos Direitos Humanos, e Iratxe García Pérez, de Espanha, presidente do grupo parlamentar socialista, que dizem, em carta enviada ao responsável pela diplomacia europeia, que os acontecimentos na Guiné-Bissau constituem "uma ameaça real ao Estado de direito democrático, que está a minar a paz e a estabilidade no país" e pedem que seja considerada a aplicação de sanções, SIssoco Embaló deu como resposta que a Guiné-Bissau "não é na Europa, é em África".
Na terça-feira, os eurodeputados socialistas portugueses Carlos Zorrinho e Isabel Santos e a espanhola Iratxe García Pérez solicitaram, ao chefe da diplomacia europeia, que preste "atenção especial" à "anarquia política" na Guiné-Bissau e considere a possibilidade de sanções.
O autoproclamado Presidente da Guiné-Bissau, citado pela Lusa, lembrou que, na mesma lógica, os deputados da Guiné-Bissau "também podem escrever ao comissário de Assuntos Políticos da União Africana a pedir sanções para qualquer membro da União Europeia".
"Isso é conversa deles. A Guiné-Bissau é um país da sociedade das nações. Não se esqueçam que nós não fazemos parte do continente europeu, nós estamos em África", disse, acrescentando que a Guiné "é apenas parceira" da União Europeia, o que não permite aos deputados europeus fazerem este tipo de ameaças.
Passado atribulado
A Guiné-Bissau foi a primeira das antigas colónias portuguesas em África a proceder à proclamação da independência, a 24 de Setembro de 1973, nas matas de Madina do Boé, no leste do país.
A fundação da nacionalidade começou já de forma violenta, em 1973, em Conacri, capital da Guiné-Conacri, onde o PAIGC tinha a coluna principal da sua força de oposição ao colonialismo português.
Meses antes da independência proclamada, a 20 de Janeiro desse mesmo ano, Amílcar Cabral, o histórico fundador do PAIGC e considerado o pai da Nação guineense, foi assassinado pelos seus companheiros de luta.
Depois, o país teve o seu arranque enquanto Estado com um golpe militar onde o general Nino Vieira derrubou Luís Cabral, o primeiro Presidente do país e irmão de Amílcar Cabral, que governou até finais da década de 1990, quando, numa guerra civil - a Guerra de 07 de Junho, que durou entre 1998 e 1999 - de mais de um ano, onde tiveram participação activa ao lado de Nino Vieira o Senegal e a Guiné Conacri, levou ao derrube de Nino Vieira, que se exilou em Portugal.
Depois de anos de permanente instabilidade política e militar, marcada pela frenética presidência de Kumba Yalá, Nino Vieira regressa a Bissau em 2005, ganhando as eleições que lhe permitiu governar até 2009, ano em que foi assassinado em mais um golpe militar.
Desde então, e apesar de alguns anos de relativa acalmia, a Guiné-Bissau voltou a mergulhar no caos político, embora sem intervenção militar alguma, tendo ficado os últimos anos marcados pelos abusos cometidos pelo anterior Presidente, José Mário Vaz, que lhe permitiram governar por mais dois anos que o limite oficial do seu mandato e que, agora, volta a ferver por entre novas dúvidas quanto à lisura eleitoral num dos mais problemáticos, e dos mais pequenos, países africanos.